OS MILAGRES E A PERSPICÁCIA DE IRMÃ DULCE
OS MILAGRES E A PERSPICÁCIA DE IRMÃ DULCE
A futura santa deu a vida pelos pobres, mas soube muito bem transitar entre os poderosos
A cegueira de José Maurício Bragança Moreira não chegou na forma de escuridão total, mas de um vapor cinzento que foi se adensando, pouco a pouco, e turvando a vista. Em janeiro de 2000, três meses depois dos primeiros sintomas, ele já estava completamente cego. Os nervos ópticos, os feixes de tubinhos minúsculos que transformam as imagens captadas pela retina em impulsos para serem decodificados pelo cérebro, foram esmigalhados pelo glaucoma.
Moreira teve de reaprender coisas simples, como se locomover dentro da própria casa, para sobreviver com a nova condição. Ele trocou de profissão, mudou de cidade e se casou. Numa madrugada de 2014, torturado por uma conjuntivite, o baiano encostou uma pequena imagem de Irmã Dulce nos olhos e suplicou à freira morta em 1992 que as dores parassem, para que conseguisse dormir. Não se atreveu a pedir para voltar a ver porque acreditava ser impossível. Caiu no sono e, algumas horas depois, tomou um susto ao enxergar o vulto da própria mão. A despeito dos nervos ópticos estarem tão destruídos como antes, Moreira recuperou a visão e o hoje músico, aos 50 anos, convive com uma inofensiva miopia.
“Quando vi minha esposa pela primeira vez, cheguei perto dela e tudo que eu consegui dizer foi: ‘Mas como tu é bonita...’.”
“IRMÃ DULCE E NORBERTO ODEBRECHT MONTARAM, JUNTOS, UM INTRINCADO ESQUEMA PARA CONSEGUIR UM EMPRÉSTIMO DO BANCO DO BRASIL PARA UMA OBRA DE SUA ORDEM RELIGIOSA”
A ciência não conseguiu explicar como Moreira voltou a enxergar. Seu caso foi a segunda cura atribuída a Irmã Dulce por teólogos da Santa Sé e que levará o papa Francisco a declarar a religiosa, no domingo 13, a primeira santa nascida no Brasil. A primeira cura considerada sobrenatural pelo Vaticano beneficiou a servidora pública de Malhador, Sergipe, Cláudia Cristiane Santos, que em 2001 foi desenganada pelos médicos depois de sofrer um quadro de hemorragia após um parto. Embora tenham sido os únicos casos de cura analisados por peritos no processo canônico de Irmã Dulce, Santos e Moreira integram um grupo de mais de 10 mil pessoas que alegam ter sido beneficiadas pelas preces destinadas à freira baiana desde 1999.
Muito antes da profusão de relatos de obras inexplicáveis atribuídas a ela, Irmã Dulce (1914-1992) já carregava a fama de santa viva por perambular por regiões paupérrimas de Salvador, onde nasceu, para oferecer mantimentos, remédios e todo tipo de assistência a uma população carente de tudo. Ela abandonou o cotidiano privilegiado em uma família de classe média alta — era filha de um dentista e neta de um deputado — para abraçar a vida religiosa quando tinha 18 anos. Professou seus votos em um convento de Sergipe e depois voltou para a terra natal. Após uma experiência fracassada como professora, ingressou no apostolado social em uma organização dedicada à assistência ao operariado ao lado do frei alemão Hildebrando Kruthaup (1902-1986), seu mentor e um dos religiosos mais poderosos da Bahia no século passado.
Em 1939, um jornaleiro de 15 anos tremendo de febre invadiu a sede do Círculo Operário da Bahia, onde a freira trabalhava, e fez um apelo desesperado: “Irmã, não me deixe morrer na rua”. Não que a miséria fosse novidade; naquela época, na Cidade Baixa de Salvador, era comum que padres fossem chamados às pressas para ministrar o último sacramento a doentes que agonizavam e morriam no meio da rua. Mas o pedido daquele menino, praticamente uma criança, petrificou a freira.
Irmã Dulce lembrou-se de umas casinhas abandonadas perto dali. Num ato de desespero, pediu a um banhista para arrombar uma das portas. Com os trocados que tinha, comprou um colchonete, um candeeiro a querosene, biscoitos e leite e instalou o menino no imóvel invadido. No dia seguinte, entrou na segunda casa e abrigou uma mulher com câncer em estado terminal. Pouco depois, ocupara cinco casas com doentes e havia recrutado voluntários para alimentá-los e medicá-los. O dono das casas denunciou a freira “maluca” para a prefeitura, mas Irmã Dulce conseguiu negociar com ele um acordo: ela não levaria novos doentes e devolveria os imóveis depois que eles se curassem ou morressem. Em troca, o proprietário desistiu do despejo.
Esse episódio ilustra duas características fundamentais da personalidade da freira: o destemor para tomar riscos e a capacidade de virar o jogo, comovendo seus antagonistas. A partir daquele momento, ela passou a viver um constante gato e rato com as autoridades de Salvador, que durou dez anos. Ela invadia imóveis — públicos, não mais privados — para instalar doentes e só depois negociava.
Em 1949, embarcou num novo empreendimento temerário: mandou matar as galinhas do galinheiro do convento onde morava, instalou uns estrados e colchões, fechou as paredes com compensado. Ali, instalou 70 doentes que antes atendia na rua. Esse foi o embrião do que é hoje um dos maiores hospitais do Nordeste, com mais de 3 milhões de atendimentos por ano.
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