O erro crasso de Cármen Lúcia A decisão da próxima quarta-feira nada tem a ver com diferenças ideológicas


O erro crasso de Cármen Lúcia
A decisão da próxima quarta-feira nada tem a ver com diferenças ideológicas
Por Sérgio Praça
access_time2 abr 2018, 21h49 - Publicado em 2 abr 2018, 21h00
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Cármen Lúcia recebe o presidente Michel Temer em sua casa (Pedro Ladeira/Folhapress)

Em pronunciamento hoje na televisão, a presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, disse algumas palavras bonitas. Geralmente discursos políticos são pouco interessantes e não tenho paciência para eles. Mas este vale o comentário.

A ministra disse, entre outras coisas, que:

* (É preciso ter) “serenidade para que as diferenças ideológicas não sejam fonte de desordem social”

* “O fortalecimento da democracia brasileira depende da coesão cívica para a convivência tranquila de todos. Há que serem respeitadas opiniões diferentes”

* “Diferenças ideológicas não podem ser inimizadas sociais. A liberdade democrática há de ser exercida sempre com respeito ao outro”

* “A efetividade dos direitos conquistados pelos cidadãos brasileiros exige garantia de liberdade para exposição de ideias e posições plurais, algumas mesmo contrárias. Repito: há que se respeitar opiniões diferentes”

O pano de fundo, óbvio, é a decisão de quarta-feira sobre o habeas corpus do ex-presidente Lula (PT). Os onze juízes do STF decidirão se condenados em segunda instância (ou seja, por um colegiado de juízes) devem passar a cumprir suas sentenças imediatamente ou se devem esperar o “trânsito em julgado” – ou seja, a terceira e quarta instâncias (o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal). É possível que a decisão seja abrangente, referindo-se a todos os casos, ou específica, apenas para o de Lula. Impossível saber, por enquanto.

Antes de mais nada, vale lembrar que o STF é um antro de leniência com corruptos. Quem tem foro privilegiado – como ministros e parlamentares – é investigado e julgado pelo Supremo. Com raríssimas exceções, os onze juízes sentam em cima dos processos até que eles percam a validade. (É com essa pitada de sal que se deve adocicar os discursos indignados de Luís Roberto Barroso contra pilantras.)

Bem, Cármen Lúcia refere-se a ideologia e “opiniões diferentes”. Mas não é isso que estará em jogo na quarta-feira, nem na atuação do STF com relação a casos de corrupção. “Ideologias” são sistemas duradouros de crenças que indicam ações a serem tomadas em uma série de circunstâncias políticas, segundo a definição da cientista política Kathleen Bawn. Ainda de acordo com ela, ideologia é muito importante na política porque estimula as pessoas a se importarem com assuntos sobre os quais elas não têm interesse direto (direct stake – “interesse” não é a tradução ideal, mas enfim).

O problema é que a condenação após segunda instância não seria, de acordo com a definição de Bawn, uma questão ideológica. Não há sistemas de crenças legítimos que possam ser favoráveis ao “trânsito em julgado”, pois não respeitam, na prática, a igualdade perante a lei. Tais sistemas de crenças existem, é claro. São compartilhados por vários advogados criminalistas e jornalistas. Mas não têm espaço em uma democracia republicana, na qual a lei vale igualmente para todos. É inacreditável ainda ter que escrever isso em 2018.

Não quero dizer, com isso, que pessoas favoráveis à execução da pena após a segunda instância sejam incríveis. Deltan Dallagnol está fazendo greve de fome e Marcelo Bretas reza mais do que são-paulino em clássico. Ambos recebem auxílio-moradia. É um benefício legal, consagrado em normas jurídicas, dado aos agentes da Justiça sejam eles tementes a Deus ou ao Fagner. É, também, contra o espírito de uma democracia republicana. Auxílio-moradia para quem tem residência onde trabalha não faz sentido algum. É o senso comum – nesse caso, corretíssimo – ignorado quando há skin in the game.

Voltando a Cármen Lúcia: não são, ministra, divergências ideológicas que estarão em jogo na quarta. Isso se resolve nas urnas, no Twitter, no Facebook, nos almoços de domingo. É algo bem mais profundo. É o direito que todos nós temos de sofrer igualmente as consequências da lei. Lula, Temer, Aécio etc. não são especiais porque exercem (ou exerceram) cargos políticos. Quem tem dinheiro e paciência para esperar o “trânsito em julgado” até que seu crime prescreva tem, na verdade, um privilégio ilegal, imoral e contra o espírito dos belos artigos da Constituição de 1988. Os onze juízes do Supremo Tribunal Federal têm oportunidade inédita para justificar os cargos que ocupam. Podem livrar Lula e os demais. É prerrogativa deles.

Mas depois, perdoem meu francês, não venham encher o saco falando de “respeito a opiniões divergentes” e “iluminismo”.

(Meu livro “Guerra à Corrupção: Lições da Lava Jato” está disponível aqui)

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