MUNDO Por que os ataques à Síria?
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Por que os ataques à Síria?
A Síria mergulhou ainda mais fundo na opção pela resistência e em sua aliança com o Irã e com o Hezbollah; o Exército sírio tem agora novas armas e está experimentado no campo de batalha. Leia o artigo de Salem H. Nasser
SALEM H. NASSER
24/04/2018 - 08h01 - Atualizado 24/04/2018 08h01
Nos últimos dias de 2002, diante de ministros das Relações Exteriores reunidos no Conselho de Segurança da ONU, Colin Powell, então secretário de Estado americano, apresentou o que deveria ser uma prova definitiva da existência, no Iraque, de programas de armas de destruição em massa. A substância da acusação, contida em ilustrações num PowerPoint, era frágil. Powell parecia verdadeiramente constrangido. O tempo mostrou, a quem não percebeu então, que ele mentia.
Ainda assim, o Conselho de Segurança estava prestes a embarcar na ficção, não por acreditar, mas porque ninguém resiste ao rolo compressor impunemente. Em relação ao Iraque, o rolo compressor conseguira impor mais de uma década de seguidas sanções que haviam levado ao esgotamento do país. Nesse dia apenas, a França, que talvez tenha realizado ali seu último grande ato diplomático, barrou o avanço de uma resolução que autorizaria o uso da força. A coragem francesa não impediu que Estados Unidos e Reino Unido interpretassem a contento as resoluções anteriores e embarcassem numa guerra tão ilegal quanto trágica.
Dois meses depois da invasão do Iraque, o mesmo Colin Powell reuniu-se em Damasco com o presidente da Síria, Bashar al-Assad. Falou mais do que ouviu e anunciou essencialmente que novos tempos haviam chegado para o Oriente Médio. A vitória no Iraque estaria consolidada. Quem não dançasse ao ritmo certo poderia conhecer o mesmo destino de Saddam Hussein. Bashar al-Assad era intimado a cessar o apoio ao Hezbollah do Líbano e fechar os escritórios das organizações palestinas na capital síria. Não obedeceu.
A Síria estava decidida a persistir na estratégia de não submissão aos Estados Unidos e de enfrentamento com Israel, de quem demanda a devolução de seus territórios, uma solução global para todos os contenciosos com os árabes e a resolução da questão palestina em particular. A estratégia a levou a uma aliança com o Irã e ao apoio do Hezbollah e da resistência armada palestina.
A persistência da escolha e a aliança custariam caro à Síria. Ao longo dos anos 2000, ela e seus aliados sofreriam imensa pressão. Ela mesma seria acusada de assassinar o antigo primeiro-ministro do Líbano e levada a sair do país. O Hezbollah e os grupos palestinos enfrentariam tentativas de extinção em ataques israelenses. O Irã lutaria contra as acusações de ter intenções militares para seu programa nuclear e contra as sanções que lhe eram impostas.
Para grande frustração dos Estados Unidos, de Israel, de países europeus e das monarquias árabes, a Síria e seus aliados não apenas sobreviviam aos ataques, mas pareciam sair fortalecidos de vários dos embates: a Síria continuou a ser ator incontornável, o Hezbollah se tornou um poder militar cada vez mais formidável, os palestinos resistiam a cada novo ataque e o Irã terminou por obter exatamente o acordo nuclear que queria.
Ao longo de todo esse tempo, as representações dessa aliança e de seus membros, as narrativas sobre seu patrocínio ao terrorismo, a distinção entre seu “radicalismo” e a “moderação” de outros, a explicação sectária para os conflitos regionais, tudo isso reverberava a construção da ameaça iraquiana, uma construção que, depois de ter servido a seu propósito, pouco importava se era mentirosa ou infundada.
Quando começaram as revoltas no mundo árabe em relação à Síria, os Estados Unidos, Israel e os países europeus, e com eles países árabes e a Turquia, viram ali a oportunidade de derrubar o governo, de fazer com que o país mudasse de lado no grande jogo regional e de golpear mortalmente a aliança com Irã e Hezbollah.
A explosão da violência, a militarização da revolta inicialmente pacífica, o surgimento do Estado Islâmico e seus congêneres, o influxo de dezenas de milhares de guerrilheiros estrangeiros para lutar contra o regime, tudo servia a tal propósito. Na melhor e na mais inocente das hipóteses, esses fatos eram acidentais e passavam a ser instrumentalizados. Em outra hipótese, esses fatos foram intencionais.
O outro lado também mobilizou todas as suas forças nessa guerra em que todo o seu destino estava em jogo. O Irã investiu o que pôde, o Hezbollah lutou ao lado do Exército sírio. Mais tarde no jogo, a Rússia, que já fornecia apoio político à Síria, passou a participar do esforço de guerra, não por compartilhar dos ideais do campo da resistência, mas para não permitir que as regras da política mundial continuassem a ser ditadas a sua revelia.
Mais recentemente, pelo menos desde a reconquista de Alepo, os ventos da guerra, e com eles os ventos políticos, sopram a favor do governo sírio e de seus aliados. Foi retomada a maior parte dos territórios; o Estado Islâmico, se não foi ainda totalmente derrotado, já não exibe uma fração da formidável força que chegou a ter; os demais grupos estão enfraquecidos, acuados e em retirada.
Nos últimos dias ocorreu talvez a mais importante das vitórias: o governo retomou o essencial de uma região próxima à capital, Damasco, expulsando dali os guerrilheiros que apresentavam o último grande risco direto ao poder central.
O quadro que se instalava era desconfortável para todos os que trabalharam e desejaram a queda do governo: a Síria mergulhou ainda mais fundo na opção pela resistência e em sua aliança com o Irã e com o Hezbollah; o Exército sírio tem agora novas armas e está experimentado no campo de batalha; o Hezbollah aprendeu muito e está mais pronto para confrontações futuras; o Irã agora tem uma presença física na Síria e está mais próximo de Israel; a cultura da resistência e a experiência do Hezbollah podem vir a se instalar no Golã sírio ocupado e anexado por Israel; a Rússia, a partir da Síria, cresceu em poder e é agora incontornável na definição dos destinos da região.
É nesse momento que, segundo os americanos e os europeus, os sírios teriam cometido o único erro que não podiam cometer: teriam perpetrado um ataque com armas químicas e com isso dado a seus inimigos a única desculpa de que precisavam para se inserir novamente num jogo de que tinham sido virtualmente afastados em derrota.
Os ataques americanos e europeus à Síria, assim como os feitos por Israel, não são em absoluto comparáveis à invasão do Iraque em 2003, mas é certo que, quando a representante americana Nikki Haley apresenta, no Conselho de Segurança da ONU, as fotos das vítimas de cada suposto ataque químico, ela fica estranhamente parecida com Colin Powell. Menos constrangida, é verdade.
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