Pesquisadora relata os horrores de uma prisão no Rio Grande do Norte

Presos durante rebelião em Alcaçuz no ano passado. A situação da cadeia, comparada à de um campo de concentração, mudou de lá para cá — para pior (Foto: Andressa Anholete / Afp)
BRASIL

Pesquisadora relata os horrores de uma prisão no Rio Grande do Norte

O que aprendi acompanhando por um ano a vida dos detentos no presídio de Alcaçuz, no Rio grande do norte

JULIANA MELO (DEPOIMENTO DADO A HELENA BORGES)
19/03/2018 - 08h01 - Atualizado 19/03/2018 08h01
Venho acompanhando as famílias de presos da penitenciária de Alcaçuz desde o massacre de 26 presos que aconteceu em 14 de janeiro do ano passado. Sou professora de antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, moro em Natal e fui para lá no dia seguinte, de manhã. Encontrei várias mulheres — mães, irmãs e esposas — desesperadas. Dentro da cadeia, uma situação sistemática de torturas se estabeleceu a partir dessa época — e persiste até hoje. O que acontece em Alcaçuz, localizada em Nísia Floresta, a 25 quilômetros de Natal,  é uma morte lenta: presos são espancados, eletrocutados, insultados, privados de comida, privados de água, privados de exercer sua religião, e suas famílias são maltratadas quando vão visitá-los.
Trabalho acompanhando o sistema prisional há um bom tempo, mas não tinha noção da intensidade da tortura que temos no Brasil, algo legitimado socialmente e pelas instituições jurídicas, que se negam a reconhecer sua existência. Parece mentira. Aquilo é um campo de concentração. Testemunhamos ali o poder do Estado de matar. Se eu estivesse lá dentro, enlouqueceria. Tudo que eu iria querer seria fugir dali, porque é humanamente impossível viver em condição tão horrível. E há presos provisórios, gente com transtornos mentais, pessoas que nem deveriam estar ali.
Depois do massacre do ano passado, nos primeiros dias os presos começaram a ser privados de água. Em meados de 2017, 30 a 35 homens chegaram a ficar, e ainda ficam, em uma cela que deveria comportar apenas oito. A eles só eram oferecidos 2 litros de água por dia. Todos deveriam dividir esses 2 litros para beber. Outra coisa que angustiou muito as famílias foi a privação alimentar. Antes, as visitas levavam no final de semana algum alimento para complementar a dieta, que é muito restrita. Isso foi proibido. Mães viram seus filhos emagrecer drasticamente. Continua acontecendo.
O secretário de Justiça, Luís Araújo, disse que, se permitisse às famílias levar a comida para lá, os presos fariam trocas, o que criaria uma hierarquia na cadeia. Isso já está acontecendo. O estado fornece três refeições diárias: um suco em pó e um pão pela manhã; à tarde uma quentinha malcheirosa e podre; à noite mais um pão e um suco em pó. Isso é a alimentação deles. E alguns passam fome para vender aos outros sua cota diária. Não são todos que fazem isso, mas existe um comércio. Um pão de sal é vendido por R$ 20 dentro de Alcaçuz.
A água para higiene é ligada por meia hora, três vezes ao dia. Os agentes ligam às 6 da manhã, ao meio-dia e às 18 horas. Depois cortam. Nessa meia hora, os presos têm de tomar banho, escovar os dentes e lavar a pouca roupa que há. Eles estão sem lençol e sem colchão. Dormem no chão ou em camas que na verdade são blocos de concreto. Eles têm praticamente a roupa do corpo. Os produtos de higiene que as famílias enviam não chegam a eles. No ano passado, alguns tiveram de compartilhar até escova de dentes. O acesso a bens de higiene é muito restrito. Há vários casos de doenças como hepatite, tuberculose, doenças de pele, sífilis e aids.
Insultos morais acontecem o tempo todo. Uma mulher nos contou as coisas que seu marido ouviu de um agente: que eles eram “um bando de veadinhos”, que eles podiam reclamar à vontade que nenhuma denúncia iria surtir efeito e que o “bom-dia” deles é com spray de pimenta mesmo. E spray de pimenta é a coisa que mais existe lá. Se for até a frente de Alcaçuz e observar de fora os agentes penitenciários, vai ver que todos eles usam uma espécie de cachecol protegendo as vias aéreas. Por quê?
Além da tortura pela privação do acesso à água, à comida e à higiene, há os espancamentos. Uma mãe que fala: “Juliana, meu filho está apanhando tanto que não sabe mais quanto tempo vai aguentar”. Elas contam que seus filhos têm marcas de hematomas nas costas e nas costelas e os dedos de suas mãos são quebrados.
Familiares de presos relatam torturas e agressões. Detentos são chamados de “bando de veadinhos” e ouvem que bom-dia de preso é spray de pimenta (Foto: Juliana Melo)
Para os choques elétricos, eles fazem uma fila, um encostando no outro, sendo que o último segura na porta de ferro. O agente dá um choque em todos de uma vez, atacando o primeiro da fila com a Taser, uma pistola de descarga elétrica. Também há relatos de as celas terem sido por vezes inundadas com água sanitária, e os presos terem de ficar lá dentro nus, sem poder sentar ou deitar a noite inteira.
Por qualquer coisa que façam, os detentos vão para o “castigo”, o mais insalubre da prisão. São celas de isolamento escuras, fétidas e úmidas. A pessoa pode ficar cinco dias, 30 dias no escuro completo, sem previsão de quando vai sair. E isso acontece por qualquer motivo. Temos, por exemplo, o relato de um preso que demorou um pouco mais no banheiro durante uma visita porque tem problema urinário. Foi enviado para o castigo.
Outro tipo de tortura é chamado de “Procedimento”. Quando os guardas passam gritando essa palavra, o preso tem de ficar sentado no chão, com as pernas abertas e dobradas, cabeça baixa e as duas mãos na nuca. O seguinte senta na mesma posição, logo em frente, entre as pernas do anterior, de costas para ele. E assim eles formam uma fila, um atrás do outro, com as mãos na cabeça. Os agentes passam dando cacetadas nos dedos das mãos. Isso acontece a qualquer momento. Se estiver tomando banho e ouvir o chamado, o preso tem de sair correndo e entrar no procedimento. Acontece dentro das celas, nos pátios, nos corredores, onde eles estiverem. Presos oferecem as costelas, porque não aguentam mais apanhar nos dedos quebrados.
Se o preso pedir água, apanha; se pedir para tomar banho, apanha; se pedir um remédio, apanha; se estiver dormindo e não ouvir o agente chamando para “procedimento”, apanha de novo. Eles apanham e são insultados o tempo todo.
Se pedir água, apanha; se pedir para tomar banho, apanha; se pedir um remédio, apanha; se estiver dormindo e não ouvir o agente chamando para o “procedimento”, apanha de novo. Eles apanham e são insultados o tempo todo
O secretário de Justiça Luis Araújo foi gravado, e o vídeo está na internet: agentes em formação cantam uma paródia da música “Despacito” que se chama “De castigo”. É uma música sobre tortura, a letra diz que “do procedimento você vai pro castigo, de isolamento dez dias seguidos” e “quero ver quanto gás na cela cabe”. O secretário ri compulsivamente da letra.
Presos de duas facções rivais estão sendo mantidos no mesmo pavilhão, separados apenas por um muro alto; famílias afirmam que conflito é iminente (Foto: Juliana Melo)
Participei de uma audiência pública com esse secretário em 12 de setembro de 2017. Questionei-o sobre os espancamentos. Ele assumiu que os agentes batem mesmo, disse que é para enfraquecer as mãos dos presos, para que eles não joguem pedras. Ele disse isso na Câmara Municipal de Natal, em uma audiência que foi gravada. Esse vídeo também está na internet.
Em março do ano passado a Defensoria Sem Fronteiras — instituição de cooperação entre o Ministério da Justiça e Segurança Pública e a Defensoria Pública da União — entrevistou 1.311 dos presos, o que deu origem dois meses depois a um relatório final com todo esse quadro de tortura. O “Procedimento” é descrito em relatos de presos, segundo os quais “agentes penitenciários encapuzados ingressavam nas celas e iniciavam o espancamento, com agressões nas mãos em torno da nuca e na cabeça”.
Essa situação permanece, mas piorou em termos de superlotação. Na época, esses 1.311 entrevistados representavam todas as pessoas privadas de liberdade recolhidas na Penitenciária Estadual Rogério Coutinho Madruga e na penitenciária estadual de Alcaçuz. Hoje essa ocupação quase dobrou, são 2.100 no complexo.
Confrontando esse estudo da Defensoria Sem Fronteiras com o ofício que recebi do Ministério Público no dia 20 fevereiro — uma resposta à reunião que tive em maio do ano passado para apresentar denúncias —, percebe-se que o estado vem negando essa prática da tortura. O Ministério Público levou mais de dez meses para decidir pelo arquivamento. E eles não tocam na questão da tortura, alvo central da reunião. Disseram que a denúncia era genérica demais. O estado sabe que tudo isso acontece, porque existe esse relatório.
Um dia depois de eu receber a resposta, em 21 de fevereiro, houve uma tentativa de rebelião no Pavilhão 5. Fizeram um agente refém dentro de uma cela, mas a rebelião foi contida e, para a mídia, completamente abafada. Não saiu nada. Preocupadas, as famílias estiveram lá na porta da penitenciária na mesma semana, com faixas pedindo que se separassem os presos, porque eles se odeiam. Faz tempo eles estão dizendo que vão se matar ali dentro. Desde o ano passado vêm prometendo vingança. Entre o Sindicato do Crime e o PCC, facções rivais, a tensão é muito grande.
Antes do ano passado, só o PCC estava no Pavilhão 5. Foi esse o grupo que conseguiu fugir e invadir o Pavilhão 4, onde havia gente da facção Sindicato do Crime. Eles saíram das celas por cima, porque uma ala de segurança máxima não tem teto, só tem grade, e os agentes penitenciários ficam armados no topo.
Agora, a Secretaria de Segurança do Rio Grande do Norte juntou todos eles no Pavilhão 5. Ali há uma ala para o Sindicato e outra para o PCC. A única coisa que os separa é um muro. O muro é alto, de concreto, dizem que é inviolável. Mas antes também era uma prisão de segurança máxima que só abria por cima, com oito cadeados. Essa grade só podia ser aberta por cima. E ela foi aberta por cima.
Juliana Melo é professora de antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Foto: Arquivo pessoal)


 
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