Uma história de medo Putin convenceu-se de que está na mira dos EUA. Há uma década, ele faz tudo para garantir que os americanos jamais o tirarão do poder



Uma história de medo

Putin convenceu-se de que está na mira dos EUA. Há uma década, ele faz tudo para garantir que os americanos jamais o tirarão do poder
JULIA IOFFE
02/02/2018 - 08h01 - Atualizado 02/02/2018 14h28
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HERANÇA
Putin e Yeltsin, em 1999. Para aliados de Putin, os EUA se beneficiaram do governo fraco de Yeltsin (Foto: Sovfoto/UIG via Getty Images)

Quando está nevando, os barrancos do Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou se fundem com o céu baixo, cor de aço. Era aqui que, um dia, o Estado soviético formava seus diplomatas e espiões. Aqui, eles adquiriam domínio sobre as nuanças do mundo antes de sair para ele. Hoje, o papel da universidade é em grande medida o mesmo, apesar de enfraquecido pela corrupção: os ricos muitas vezes pagam para seus filhos serem aceitos. Eu tinha sido convidada para ouvir uma palestra de um dos membros mais proeminentes do corpo docente, Andranik Migranyan, ele mesmo formando de 1972. Migranyan passou boa parte da última década em Nova York, onde dirigia o Instituto pela Democracia e Cooperação, um think tank com relatos de laços com o Ministério do Exterior russo. Entre seus antigos companheiros de classe está Sergei Lavrov, o ministro das Relações Exteriores, que ainda é seu amigo.
OBSESSÃO
Putin com Muamar Kadafi, em 2008, na Líbia. Putin ficou perturbado com o linchamento do ex-ditador líbio (Foto: Artyom Korotayev/Epsilon/Getty Images)

Nessa tarde, Migranyan faria uma palestra sobre o discurso de Putin na Conferência de Políticas de Segurança em Munique, em 2007 – o único documento ideológico pós-soviético da Rússia e essencial para entender como o relacionamento entre a Rússia e os EUA chegaram ao nadir de hoje. Putin, na época ainda com grandes dificuldades como orador, estava no sétimo ano do seu reinado, que hoje está perto dos 20 anos. Dezoito anos antes, em 1989, ele era um membro da KGB instalado em Dresden, Alemanha Oriental, jogando documentos comprometedores em uma fornalha enquanto manifestantes se juntavam do lado de fora e o Muro de Berlim se esfacelava. Não muito depois daquilo, a União Soviética estava morta e enterrada, e o mundo parecia ter chegado a um consenso: a abordagem soviética da política – violenta e não democrática – estava errada, era até um mal. A ordem liberal ocidental era uma forma de governo melhor e mais moral.

>> O que Putin quer

Por algum tempo, Putin tentou encontrar um papel para a Rússia dentro dessa ordem ocidental. Quando Boris Yeltsin, o primeiro presidente russo pós-soviético, nomeou-o seu sucessor, em 1999, a Rússia estava travando uma guerra contra separatistas islâmicos na Tchechênia. Depois do 11 de setembro de 2001, Putin foi o primeiro líder estrangeiro a ligar para o presidente George W. Bush, na esperança de causar a impressão de que eles agora eram aliados na luta contra o terrorismo. Ele tentou ajudar no Afeganistão. Mas, em 2003, Bush ignorou suas objeções à invasão do Iraque, driblando o Conselho de Segurança da ONU, em que a Rússia tem poder de veto. Foi um lembrete humilhante de que, aos olhos do Ocidente, a Rússia era irrelevante, de que “as objeções russas não tinham peso nenhum”, disse Migranyan a seus alunos. Para Putin, porém, era algo mais: sob o pretexto de promover a democracia e os direitos humanos, Washington tinha voltado à política da era da Guerra Fria de depor e instalar líderes estrangeiros. Até o uso aberto de força militar estava valendo agora.
A invasão do Iraque em 2003 acendeu a luz amarela para Putin. Ele a viu como a volta dos EUA à era da Guerra Fria (Foto: Montagem Época)

Em 2007, falando aos representantes e defensores da ordem ocidental, Putin registrou oficialmente sua divergência. “Há apenas duas décadas, o mundo estava dividido ideológica e economicamente, e a segurança era fornecida pelo imenso potencial estratégico das duas superpotências”, disse Putin, pesaroso. Essa ordem tinha sido substituída por um “mundo unipolar” dominado apenas pelos EUA. “É o mundo de um mestre, de um soberano.”

Uma ordem mundial controlada por um único país “não tem nada em comum com democracia”, observou de forma pertinente. A ordem corrente era “inaceitável” e ineficiente. “Ação unilateral, ilegítima” criava apenas “novas tragédias humanas e centros de conflito”. Ele estava se referindo ao Iraque, que àquela altura tinha descambado para uma guerra sectária. Tinha chegado o momento, ele disse, “de repensar toda a arquitetura da segurança global”.

Isso era o protesto de um lado perdedor que queria renegociar os termos de rendição 16 anos depois do fato. Não obstante, Putin passou uma década, depois daquele discurso, certificando-se de que os EUA nunca mais pudessem manobrar unilateralmente sem encontrar resistência e, o mais importante, de que eles jamais poderiam depô-lo.

“Vocês precisavam ter visto a cara de John McCain (republicano do Arizona que foi candidato à Presidência dos EUA em 2008) e de Joe Lieberman (democrata de Connecticut que foi candidato a vice-presidente dos EUA em 2000)”, disse com prazer Migranyan a seus alunos, que mal pareciam ouvir. “Os senadores americanos linha-dura que estavam presentes no discurso de Putin ficaram pasmos. A Rússia tinha sido deixada de lado! E Putin tinha cometido um pecado mortal em Munique: tinha falado a verdade.”

O ano que se seguiu, disse Migranyan, “foi o ano de feitos e ações”. A Rússia entrou em guerra contra a vizinha Geórgia em 2008, uma atitude que Migranyan descreveu como uma espécie de retribuição para a Otan, que tinha se expandido para incluir outras ex-repúblicas soviéticas. Mas a intromissão do Ocidente na periferia da Rússia não era a queixa principal do Kremlin.

Os EUA, reclamou Migranyan, também andavam interferindo diretamente na política russa. Consultores americanos tinham arquitetado dolorosas reformas de mercado pós-soviéticas, enriquecendo nesse meio-tempo, e tinham ajudado a eleger um Yeltsin enfraquecido e sem popularidade para um segundo mandato, em 1996. O governo dos EUA financiava diretamente organizações não governamentais tanto russas como americanas, como o Fundo Nacional pela Democracia, para promover a democracia e a sociedade civil na Rússia. Algumas dessas mesmas ONGs tinham laços com as chamadas revoluções coloridas – a Revolução Rosa, na Geórgia, a Revolução Laranja, na Ucrânia, a Revolução das Tulipas, no Quirguistão – que derrubavam governos em ex-repúblicas soviéticas e os substituíam por regimes democráticos favoráveis ao Ocidente.

“A Rússia olha para isso com uma desconfiança compreensível”, disse Migranyan a seus alunos. Ele observou que os EUA, como eles mesmos admitiam, tinham gasto US$ 5 bilhões na Ucrânia para promover a democracia – isto é, para expandir a ordem liberal ocidental. Por esse prisma, não é irracional acreditar que o próximo alvo dos EUA poderia ser Moscou e Putin. Por isso, em 2012, a Rússia expulsou o Usaid, órgão do governo americano encarregado de distribuir ajuda externa. Por isso, a Rússia baniu o Fundo Nacional pela Democracia em 2015, com uma nova lei que eliminava organizações “indesejáveis”.
A mudança de regime na Líbia e na Ucrânia levou a Rússia a sustentar Bashar al-Assad na Síria (Foto: Montagem Época)

Putin sempre desconfiou da promoção da democracia, mas dois momentos o convenceram de que ele estava na mira dos EUA sob esse disfarce. O primeiro foi a intervenção da Otan na Líbia, em 2011, que levou, em última instância, à deposição e ao horrendo linchamento do ditador líbio, Muamar Kadafi. Depois disso, muitas pessoas que interagiram com Putin notaram quanto a morte de Kadafi o havia perturbado. Dizem que ele assistia ao vídeo do assassinato uma vez atrás da outra. “O modo como Kadafi morreu causou um impacto profundo nele”, disse Jake Sullivan, ex-membro do alto escalão do Departamento de Estado que se encontrou repetidas vezes com membros do alto escalão russo na ocasião. Outro ex-alto funcionário do governo Obama descreve Putin como “obcecado” com a morte de Kadafi.

O segundo momento foi em novembro de 2013, quando jovens ucranianos foram para a Maidan – a Praça da Independência, na capital, Kiev – para protestar contra o então presidente, Viktor Yanukovych, por ele ter-se retirado de um acordo com a União Europeia sob pressão de Putin. Os manifestantes permaneceram ali o inverno inteiro, até a polícia abrir fogo contra eles, matando cerca de 100 pessoas. No dia seguinte, 21 de fevereiro de 2014, Yanukovych assinou um plano de reconciliação política, firmado por Rússia, EUA e União Europeia, mas naquela noite ele fugiu da capital. Para Putin, estava claro o que acontecera: os EUA tinham derrubado seu aliado mais próximo, em um país visto por ele como uma extensão da própria Rússia. Todo o dinheiro gasto pelos EUA em ONGs pró-democracia na Ucrânia tinha valido.

“Maidan engatou a marcha”, disse-me Ben Rhodes, conselheiro de Segurança Nacional para Comunicações Estratégicas de Obama. “Putin sempre foi um antagonista, e agressivo. Mas ele foi para a ofensiva depois de Maidan. De certa forma, ele partiu para o ataque. Para Putin, a Ucrânia era de tal forma parte da Rússia que ele considerou um ataque pessoal” – uma fonte próxima do Kremlin confirmou esse relato.

Putin e Lavrov eram conhecidos no governo Obama por seus longos discursos culpando o presidente americano por todo desrespeito para com a Rússia desde 1991 – como a vez, em 2014, em que Obama listou a Rússia e o ebola como ameaças globais no mesmo discurso. A queda de Yanukovych tornou esses discursos muito mais intensos. “Por dois anos depois disso, não havia um telefonema em que Putin não tocasse no assunto, acusando os EUA de apoiar a mudança de regime na Ucrânia”, relembrou Rhodes.

A mudança de regime na Líbia e na Ucrânia levou a Rússia a sustentar Bashar al-Assad na Síria. “Nenhum mais” é como Jon Finer, chefe de equipe de John Kerry, ex-secretário de Estado de Obama, caracteriza a abordagem de Putin na Síria. Ela também levou inexoravelmente à intervenção russa na eleição americana: a Rússia mostraria aos EUA que existia mais do que uma trama de mudança de regime por aí.

[Leia a segunda parte deste artigo: O que ele quer]

(Na próxima edição: Putin e os planos de continuísmo)
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