Do Sertão ao cárcere


Do Sertão ao cárcere
A condenação por corrupção é o penúltimo capítulo de uma biografia que se inicia em um pau de arara, começa a ser degenerada no movimento sindical, se corrompe em Brasília e pode terminar no sistema penitenciário


LIDERANÇA No ABC, Lula comandou mais de 200 mil operários, mas ex-companheiros dizem que as greves já eram negociadas (Crédito: Divulgação)


Mário Simas Filho25.01.18 - 20h34

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Lula /Condenado

Quando deixou o Palácio do Planalto, em janeiro de 2010, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva carregava consigo uma aprovação popular recorde de 83% e uma biografia com B maiúsculo, dessas encadernadas com capa de couro e que poucas personalidades no mundo conseguem ostentar. Tratava-se da história de uma vida capaz de encantar dentro e fora do País. Uma trajetória marcada por grandes feitos, embates quixotescos e, acima de tudo, enormes superações. Claro, havia lá também suas travessuras. Algumas passagens mal contadas dos anos 1980 e uma mancha preocupante: o chamado Mensalão. Na quarta-feira 24, depois da condenação por corrupção em segunda instância a doze anos e um mês de reclusão, a biografia de Lula, revista e ampliada, ganhou nova coloração. Não é nem um pouco admirável. Seus desvios éticos, exaustivamente comprovados, superam suas virtudes.

Na história de Lula, os desvios éticos superam as virtudes do menino que fugiu da seca e virou presidente

Agora, uma vez condenado, Lula sabe que os últimos capítulos de sua história serão escritos nos tribunais e no sistema penitenciário. “A biografia do garoto que deixou o sertão em um pau de arara e se tornou o presidente mais popular que o Brasil já teve não vai terminar no gabinete presidencial, mas sim em um presídio, como um preso comum”, disse à ISTOÉ, na manhã da quinta-feira 25, um ex-seminarista que ajudou Lula a fundar o PT, em 1980.









Sindicalistas, religiosos, acadêmicos e políticos que estiveram próximos do ex-presidente nas últimas décadas divergem quando questionados sobre o momento em que Lula começou a manchar a própria história. Muitos dizem que os desvios éticos começaram quando Lula se elegeu presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, em 1975, e passou a usufruir de algum poder. “Chegar a ser metalúrgico no ABC era o máximo da ascensão social para pessoas como ele”, diz Margaret Keck, cientista social da Universidade Johns Hopkins, no Estados Unidos. Três anos depois de chegar ao sindicato, Lula já era reconhecido internacionalmente por sua atuação à frente de mais de 200 mil operários no ABC paulista, liderando as maiores greves da história do País. “Descobrimos depois de algum tempo que o comportamento do Lula nas greves não foi nada ético.

Segundo sindicalistas, Lula apresentava um discurso radical aos grevistas e nas mesas de negociação cedia os interesses patronais

Foi de traição”, afirma um dos sindicalistas que ajudaram Lula a fundar o PT e chegou a ser candidato a deputado federal pelo partido. Segundo ele, Lula apresentava um discurso radical aos grevistas nas enormes assembleias no Estádio da Vila Euclides, mas nas mesas de negociação com os patrões se comportava de outra maneira. “Ele radicalizava com os trabalhadores e na Fiesp cedia mais do que os empresários propunham”, afirma o ex-sindicalista, hoje aposentado. Esse mesmo sindicalista lembra que boa parte das greves era promovida quando os pátios das montadoras estavam abarrotados de carros.


“Mantínhamos as greves por mais de 30 dias. Quando o pátio estava vazio, o ex-ministro Delfin Neto e os patrões acertavam o reajuste nos preços dos automóveis. Em seguida, Lula fechava acordos salarias com índices bem inferiores aos reajustes concedidos para os carros”, explica o sindicalista.



Oposição consentida


“Lula sempre negociou com as greves. Ele é bom de discurso e iludia as pessoas, depois negociava tanto com patrões como com o governo. Por isso em plena ditadura militar ele conseguiu fundar um partido de trabalhadores. Representava a oposição consentida enquanto outros líderes sindicais precisavam se manter na clandestinidade”, diz um ex-líder de Comunidade Eclesial de Base que atualmente reside em Maringá (PR).

Já com o PT criado e dividindo a esquerda com legendas e líderes ainda na clandestinidade, em 1982, Lula perdeu a disputa pelo governo paulista. Obteve menos de 3% dos votos válidos. Quatro anos depois, se elegeu deputado e pouco compareceu ao parlamento. Foi constituinte, mas sob sua liderança o PT votou contra a Constituição. Disputou e perdeu três eleições presidenciais, em 1989, 1994 e 1998. “Ele é o dono do partido e jamais permitiu que outras lideranças ocupassem espaço nacional”, diz uma ex-senadora petista. O retirante que virou líder sindical e presidente de partido só se elegeu presidente da República em 2002, depois de abandonar o discurso sindical e fazer alianças com setores empresariais que até então combatia. É nesse momento, por volta do ano 2000, que, de acordo com um segundo grupo de antigos companheiros, Lula teria começado a manchar a biografia.

“Para se eleger presidente, Lula fez exatamente tudo o que combatia até então”, afirma uma deputada que durante 12 anos foi uma das principais lideranças petistas. “Ele começou a receber dinheiro de empresários para a campanha e presentes generosos. Muitas vezes deixou de lado a cachaça para brindar com uísque”, conclui a experiente deputada. Em conversas reservadas, o ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares, já afirmou que nunca viu tanto dinheiro em campanha como em 2002.

Um terceiro grupo de ex-companheiros sustenta que a biografia do metalúrgico foi maculada um pouco mais tarde, quando Lula chegou ao Palácio do Planalto. “Havia muita dívida de campanha, inclusive de partidos aliados, e uma enorme pressão de lobistas de vários setores”, lembra um antigo conselheiro de Lula que chegou a frequentar o gabinete presidencial. “Veio o Mensalão e a institucionalização de caixa dois para o partido e também desvios para pessoas físicas”, lembra. “Lula e vários outros petistas históricos como Zé Dirceu e Antônio Palocci não resistiram aos encantos do poder e viraram presa fácil de lobistas e empreiteiros. Começaram aceitando recursos ilícitos para financiar o que chamavam de projeto de poder. Depois passaram a se beneficiar desses mesmos recursos”, explica o ex-aliado de Lula.

Antigos amigos, no entanto, são unanimes ao afirmar que a trajetória do menino que deixou Garanhuns, no sertão pernambucano, até o combatente líder sindical de São Bernardo do Campo é exemplar. Para fugir da fome e da seca nordestina, em 1954, Lula com oito irmãos e a mãe penduraram-se em um caminhão pau de arara com destino a São Paulo. Ele tinha nove anos. Quando chegaram a Vicente de Carvalho, no Guarujá, a família descobriu que o pai de Lula já vivia com outra mulher. Diante desse quadro, o menino que sonhava jogar futebol pelo Corinthians passou dois anos vendendo tapioca, amendoim e laranja nas ruas, até se mudar para um quarto no fundo de um bar no Ipiranga, bairro na zona Sul de São Paulo. Com 12 anos, o pequeno retirante foi engraxate e office boy. Aos 14 anos conseguiu registro profissional em um armazém. De lá foi parar em uma fábrica de parafusos. Fez o curso de torneiro mecânico no Senai e passou por várias metalúrgicas na região ao ABC. Com 18 anos, perde um dedo em um acidente de trabalho e em 1966 começa a fazer politica sindical. Em 1969 é eleito suplente da diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Em 1975, presidente. Trata-se, de fato, de uma história de superação. Superação de uma realidade tipicamente brasileira é que Lula foi incapaz de transformar.

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