Como os peritos da PF usam fragmentos de DNA para desvendar crimes complicados
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Como os peritos da PF usam fragmentos de DNA para desvendar crimes complicados
Embora o banco de dados genéticos com perfis de condenados e investigados conte com o entusiasmo de peritos e investigadores, a discussão sobre se a coleta realmente fere o direito de alguém não se autoincriminar é uma ameaça real
DÉBORA BERGAMASCO
14/02/2018 - 08h00 - Atualizado 14/02/2018 08h00
Durante uma madrugada de março de 2014, a agência da Caixa na pequena cidade de Cristalina, de 55 mil habitantes, no interior de Goiás, foi praticamente destruída com a explosão de seus caixas eletrônicos, num desses assaltos que se tornaram comuns no Brasil nos últimos anos. Horas depois, na cena do crime, a perícia encontrou um boné preto e cinza puído com alguns fios de cabelo em seu interior. Em maio do ano seguinte, outra dessas máquinas da mesma instituição financeira foi detonada com explosivos a mais de 2.000 quilômetros dali, em Gravatá, Pernambuco. Um par de luvas verdes de borracha foi deixado para trás pelos bandidos. Não havia impressões digitais identificáveis, mas dentro da peça foram descobertos pequenos vestígios de pele.
Quatro meses depois, de novo em Pernambuco, na cidade de Ribeirão, foi explodida durante a madrugada uma agência – também da Caixa. Como acontece muitas vezes nesse tipo de roubo, as coisas não saíram exatamente como planejado, e gotas de sangue dos bandidos ficaram pelo chão. Em outubro de 2015, mais equipamentos para sacar dinheiro foram violados com explosivos em Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais. Os peritos encontraram alguns objetos pessoais esquecidos na cena do crime, entre eles uma escova de dentes. Em dezembro de 2015, gotas de sangue foram encontradas nas estruturas de uma unidade da Caixa arrebentada por bombas em Serro, também em Minas. Com o mesmo modus operandi, mais aparelhos de transação financeira foram destruídos por detonadores em Paiçandu, no Paraná, em janeiro de 2016. Uma espessa mancha de sangue borrava uma das paredes da área detonada.
Foram seis assaltos em menos de dois anos, em cidades mais de 1.000 quilômetros distantes umas das outras, em quatro estados. Em todos esses casos, peritos criminais recolheram evidências – o boné, as luvas, a escova dental, o sangue – e analisaram os vestígios deixados pelos criminosos em busca de traços de DNA, a identificação genética individual. Encontraram. Ao jogarem as informações obtidas em um programa de computador restrito, que concentra informações de bancos de perfis genéticos de 19 estados, mais um da Polícia Federal, as luzes se acenderam. Deu “match”, o que no jargão da perícia significa a combinação perfeita. Mais surpreendente foi um match sêxtuplo, ou seja: os resíduos de DNA encontrados em todos os artefatos são de um mesmo criminoso, o que indica que ele esteve em todos os roubos. O fato foi comemorado pelos investigadores por revelar um nexo entre as explosões. Isso pode ajudar a desenrolar a complexa trama dos crimes, ainda sem solução.
Entretanto, nada se sabe ainda sobre quem é esse indivíduo. Nem nome, onde vive, se já teve passagens pela polícia ou se já está inclusive condenado por outros delitos, sem ser responsabilizado por essas seis transgressões. O confuso conjunto de letras que traduz o perfil genético é único em cada ser humano – exceto em casos de irmãos gêmeos univitelinos (gêmeos e trigêmeos idênticos, por exemplo). Os esclarecimentos que as análises apontam são a comprovação de se tratar de uma pessoa do sexo masculino – pela presença de cromossomos XY – e a individualização do sujeito, o mais relevante para as investigações, já que é um robusto indício para ajudar a inocentar um suspeito ou ligá-lo ao crime.
Falta a investigações no Brasil um banco genético mais completo, com um acervo de DNA de condenados por crimes hediondos e com grave violência contra a pessoa e de suspeitos, desde que haja autorização judicial, exatamente como prevê a lei de 2012, mas que nunca chegou a ser realmente implementado nas cadeias estaduais. Na semana passada, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, encaminhou ao Supremo Tribunal Federal um parecer sobre o assunto. A controvérsia do banco genético chegou ao Supremo em maio de 2016, por meio de um recurso extraordinário, que caiu nas mãos do ministro Gilmar Mendes. Em um caso ocorrido em Minas Gerais, o suspeito envolvido não autorizou que sua saliva fosse coletada para um exame de DNA, como manda a lei. Seu defensor público levou o caso ao Supremo, questionando a constitucionalidade da lei. Ele argumentou que a coleta é uma possível violação de direitos da personalidade e da prerrogativa de alguém não se autoincriminar.
Em seu parecer, Raquel Dodge recomenda que o Supremo não dê provimento ao recurso do defensor e mantenha a norma vigente. No texto, a procuradora-geral afirma que não há “ofensa aos artigos 1º e 5º da Constituição Federal”. Para ela, “a identificação criminal é direito do Estado voltado à promoção da segurança pública”. Argumenta que há “ausência de ofensa ao princípio da legalidade, uma vez que a obrigação encontra-se amparada em lei, em consonância com o princípio da proporcionalidade e de outros direitos constitucionais envolvidos, assim como em orientação da Unesco sobre o tema”.
A decisão do caso é fundamental para manter um recurso extremamente útil em investigações no mundo inteiro. Crimes contra o patrimônio, como os roubos a caixas eletrônicos, nem são o foco principal. A análise de dados genéticos é uma ferramenta mesmo para a elucidação de crimes sexuais, especialmente em casos em que há estupro com conjunção carnal, pois a perícia pode coletar vestígios de sêmen e saliva no corpo da vítima, esteja ela com vida ou não. Foi o caso do pastor e músico evangélico Renato Bandeira. Em 2015, ele foi preso em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, acusado de assédio. Na prisão, por determinação da Justiça, sua saliva foi coletada. Seu material biológico foi enviado ao banco de dados integrado. Assim que a sequência genética entrou no sistema das polícias, descobriu-se que o DNA daquele preso era o mesmo coletado em vestígios presentes em ao menos três estupros, ocorridos entre 18 de agosto e 29 de dezembro de 2014 e que permaneciam nas pilhas de crimes sem solução. Eles aconteceram em Águas Claras e Taguatinga, cidades no entorno de Brasília, e seguiram o mesmo ritual: o estuprador perambulava de carro por lugares ermos e escolhia as vítimas aleatoriamente. Abordava as mulheres com arma de fogo ou facão, obrigava-as a entrar no carro, onde as estuprava, e em seguida as abandonava.
Na semana passada, a Polícia Científica do estado de São Paulo obteve autorização judicial para colher a saliva de um criminoso em série preso na cadeia de Guarulhos, cujo nome ainda não foi divulgado. Ele era acusado de cometer sete estupros. Processadas suas informações e compartilhadas no banco de dados, pôde-se atribuir não só os sete conhecidos, como ainda mais três estupros pelos quais não era nem mesmo considerado suspeito. Agora ele deve responder por dez crimes sexuais.
Walker Fernandes Faraes já cumpria pena de 19 anos e 11 meses de prisão por quatro estupros em Minas Gerais. Ao fornecer saliva para cadastramento no banco de dados, em março de 2017, acabou contribuindo para a elucidação de outro crime, um estupro seguido da morte de uma jovem de 18 anos, em Brasília, que estava havia cinco anos sem solução. Agora, Faraes deve responder por mais um estupro e por homicídio qualificado. “A mensagem que fica é que não importa em qual estado o criminoso esteja atuando, ele poderá ser encontrado”, afirma o perito criminal Alexandre Learth Soares, diretor do Núcleo de Biologia e Bioquímica do Instituto de Criminalística de São Paulo.
A coleta de material biológico para ser confrontado com vestígios presentes em bancos de dados das polícias do país, instituída pela lei de 2012, é feita hoje pelo chamado “swab bucal”, em que o perito passa uma espécie de cotonete grande na mucosa interna da bochecha do indivíduo. A lei prevê que a pessoa ceda a amostra em apenas dois casos: quando esteja sob investigação, sendo a análise de seus genes indispensável para as apurações, e sempre mediante autorização judicial; e para todos os condenados em crimes hediondos ou com grave violência contra a pessoa. Se a norma estivesse sendo cumprida à risca e as amostras estivessem sendo colhidas e processadas Brasil afora, o banco nacional deveria ter no mínimo 70 mil pessoas com suas cadeias de DNA devidamente identificadas, de acordo com cálculos da Secretaria Nacional de Segurança Pública. Atualmente, a Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos, vinculada ao Ministério da Justiça, tem nome e sobrenome de apenas 2.300 perfis genéticos – uma quantidade ínfima.
De acordo com a perita criminal Aline Minervino, coordenadora do Comitê Gestor da Rede Integrada, para que a análise de vestígios leve os investigadores a descobrir o nome de um suspeito é fundamental ampliar a base de dados de DNA. “Os bancos de dados mais completos trazem um ganho de tempo e dinheiro, ao desafogar os investigadores sobrecarregados em casos sem solução, além de ajudarem a dar respostas mais eficientes a vítimas e seus familiares”, diz Aline. O que falta, portanto, é material para trabalhar, pois a tecnologia está disponível. O Laboratório de Genética Forense do Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal, onde Aline atua, é referência na América Latina. Como o Brasil é membro da Interpol, a polícia internacional, os perfis genéticos catalogados podem ser compartilhados com outros 192 países.
O Supremo já tomou decisões que livraram suspeitos de fornecer evidências que poderiam incriminá-los
A ofensiva para aumentar o número de perfis do banco de DNA começou com o presídio federal de Catanduvas, no Paraná, onde os juízes determinaram a coleta de amostras de todos os detidos enquadrados na lei. Depois o modelo foi reproduzido nas outras penitenciárias federais. Até o fim do primeiro semestre deste ano, será realizado um projeto-piloto na Bahia para coletar os dados de todos os criminosos sexuais condenados nas cadeias estaduais. Por enquanto, seis estados brasileiros ainda não possuem laboratórios de análise genética – Rio Grande do Norte, Sergipe, Piauí, Acre, Roraima e Tocantins.
Embora o banco de dados genéticos com perfis de condenados e investigados conte com o entusiasmo de peritos e investigadores, a discussão sobre se a coleta realmente fere o direito de alguém não se autoincriminar é uma ameaça real. O Supremo Tribunal Federal já proferiu decisões garantindo que um suspeito não é obrigado a fornecer padrão gráfico para exame grafotécnico, aquele de reconhecimento de letra escrita, nem a colaborar emprestando sua voz para perícia vocal. Por isso, o parecer da procuradora-geral, Raquel Dodge, e o exame da questão no Supremo são fundamentais para dar segurança a processos em andamento e a futuras investigações.
Enquanto o Supremo não decide, não se sabe o que fazer exatamente quando a pessoa se recusar a permitir a coleta de seu material genético. A orientação é não forçar e informar imediatamente a autoridade judicial responsável. “Como a lei não prevê sanção a quem desobedecer à lei e se recusar nesse tipo de colaboração, talvez pudéssemos trabalhar com a ideia de o sujeito reconhecer como uma vantagem colaborar”, afirma o advogado e professor da Universidade de Brasília (UnB) João Costa Neto, representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) num comitê que ampara o trabalho com dados genéticos em investigações.
A par de tudo isso, a polícia mantém guardado o material genético coletado nos roubos a caixas eletrônicos, para comparar quando prender algum suspeito. Quem sabe descobrirá o sujeito por trás daquele conjunto de letras, que esqueceu tantas coisas nas agências de onde levou tanto dinheiro.
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