Que jornalismo?

Que jornalismo?

DIEGO ESCOSTEGUY - EDITOR-CHEFE
12/01/2018 - 20h29 - Atualizado 12/01/2018 20h29
Eis o fato amargo e incontestável: a imprensa profissional, uma instituição que definiu as democracias ocidentais no século XX, enfrenta a maior crise de sua história. É uma crise que pode aleijá-la permanentemente, imobilizando-a na lenta e inexorável decadência rumo à irrelevância social, cultural e política. O ocaso, no entanto, é uma possibilidade, não uma certeza. Uma crise apresenta-se como um tempo de dificuldades e perigos – de incertezas profundas sobre o futuro. Mas a saída de qualquer crise, o desfecho dela, encontra-se na própria etimologia da palavra. Do grego krisis, ou decisão. Na acepção moderna, um momento decisivo. O que será da imprensa neste século XXI depende, em larga medida, das decisões que nós, jornalistas e leitores, tomarmos nos anos vindouros. Impõe-se a pergunta fundamental: como preservar os valores e os princípios de uma imprensa profissional, necessária à democracia, adaptando-a à nossa emergente sociedade digital? Para que o jornalismo não só sobreviva. Mas avance. Prospere. Triunfe.
Não há respostas certas. O certo é que o debate público se faz cada vez mais urgente. Aqui, vale repisar as causas principais dessa crise, já razoavelmente estabelecidas. Antes da internet, veículos como jornais, revistas, canais de TV e rádios detinham o monopólio da comunicação em massa. Jornalistas, mediante critérios profissionais de equilíbrio e rigor, buscavam fatos relevantes e inéditos, determinavam se esses fatos eram de interesse público e, por fim, os ofereciam ao leitor, telespectador ou ouvinte. Havia uma oferta escassa de opções para conhecer os fatos do mundo. Ainda assim, ou talvez por isso mesmo, a imprensa tornou-se a bíblia da democracia, como definiu um dos patronos do jornalismo profissional, o americano Walter Lippmann.
O mundo, em toda a sua pequena ou grandiosa complexidade, fosse um crime no bairro ou uma guerra distante, materializava-se, em papel ou ondas eletromagnéticas, na hora combinada, no dia esperado. Um encontro certo e previsível como o alternar do dia e da noite. Um produto finito, com começo, meio e fim, apresentando um mundo inteligível, também com começo, meio e fim. Para cada um de nós, o valor – o prazer – de um jornal, uma revista ou um telejornal era evidente. Não havia (grande) dúvida quanto a gastar dinheiro com ele. Para os anunciantes, que pagavam pelo privilégio de se aproximar das pessoas no momento oportuno, também era um bom negócio. Esse modelo econômico permitiu que, por décadas e décadas, a imprensa, com mais acertos do que erros, cumprisse sua função como alicerce das democracias ocidentais. O conjunto de veículos conhecido como imprensa profissional estabelecia fatos, acolhidos consensualmente pelo público, fiscalizava o poder e debatia pequenas e grandes questões da atualidade.
A revolução digital deste século alterou radicalmente esse desejável equilíbrio. Hoje, nossas vidas, nossas amizades, nossos amores, nossa cólera, nossas distrações, nossa cultura, nossa história como espécie, a história de tudo que pode ser história, a soma mais absoluta e completa de informações e sentimentos contidos nela – tudo cabe num aparelhinho que cabe no bolso, de cuja tela passamos a depender mais do que da luz do sol. As nossas notícias, ou o que muitas vezes parecem ser as nossas notícias, também estão lá. Colossos planetários como Google, Facebook e Apple criaram tecnologias que subverteram a experiência humana da larga maioria de nós. Lucram com ela numa magnitude jamais vista na história do capitalismo, com quase nula regulamentação estatal. Nesse processo histórico, deslocaram o lugar da imprensa no mundo contemporâneo. Ao menos por enquanto.
O Facebook, empresa que também é dona do Instagram e do WhatsApp, tornou-se, sem produzir uma só reportagem, a maior publicação da história da humanidade, com 2 bilhões de pessoas compartilhando entre si, de graça, cenas e histórias de sua vida. As pessoas – você é chamado de usuário – também compartilham notícias da imprensa profissional, que nada ganha por isso. Todos passam cada vez mais tempo nas diversas redes da empresa; é da nossa atenção que ela extrai dinheiro, sobretudo dos anunciantes. Estes migraram, em maior ou menor grau, da imprensa para o Facebook, entre outras empresas digitais. O dinheiro que subsidiava boa parte dos veículos profissionais, em qualquer canto do mundo, rareou. E assim se estabeleceu esta crise sem precedentes, que ameaça o presente e o futuro da imprensa.
À primeira vista, este novo mundo é encantador – no mínimo, tem encantos inquestionáveis. Fora da China e de outros países com regimes autoritários, qualquer um pode dizer o que quiser, comunicar-se com quem quer que seja, graças às redes sociais. Nunca houve tamanha e tão barata liberdade de expressão. Quem há de ser contra isso? A imprensa não tem mais a primazia de dizer o que pode ser dito. Assim, num ambiente de competição aberta, qualquer um pode concorrer com veículos tradicionais pela atenção e pelo tempo de todos nós. Que mal pode haver, para a democracia, na ampliação das vozes aptas a conversar nessa praça pública planetária? A livre circulação de fatos e ideias não é um preceito essencial para as democracias liberais? Quanto maior essa circulação, mais saudáveis não estarão nossas democracias?
Quiséramos todos nós que as coisas fossem tão simples. Tudo depende, do ponto de vista democrático, de quais fatos ou ideias circulam livremente, mesmo que aos bilhões por segundo. Conteúdo não é necessariamente jornalismo – na verdade, raramente tem algo de noticioso. Um selfie, um comentário sobre o jogo de ontem, um meme dos bons: tudo isso é conteúdo, nada disso é jornalismo. Uma opinião sobre um fato público pode ser altamente salutar. Mas dificilmente será jornalismo. Acostumados e incentivados – programados sem perceber – a compartilhar e curtir, incessantemente, tudo aquilo que julgamos importante sobre nossa vida, acabamos por compartilhar e curtir, sem reflexão, boatos, notícias falsas, pirações de toda sorte. Confiamos demais. Pensamos de menos. Não é fortuito: as redes sociais são construídas para favorecer o clique fácil, a emoção súbita, não o clique ponderado, a razão detida. São programadas para viciar. E viciam.
Toda essa circulação frenética de conteúdo cria a ilusão de que estamos bem informados sobre as coisas do mundo. A verdade é que quase nunca estamos. Recebemos menos notícias confiáveis do que supomos. E lemos, se muito, somente algumas linhas – o suficiente para compartilhar uma opinião suscitada por emoções e preconceitos, frequentemente em desacordo com os fatos e a lógica. Conhecemos dolorosamente bem as consequências desse modo irrefletido de agir: a criação e destruição de bolhas de familiares e amigos, a irritabilidade impaciente com todos que pensam diferente. Não se perdem apenas amizades; perdem-se, com frequência, os fatos – o amálgama social da democracia. À corrosão dos fatos corresponde a corrosão da democracia, como observou a pensadora Hannah Arendt. Sem verdades factuais aceitas coletivamente, sem o predomínio da razão na vida pública, assomam mentiras populistas e propagandas políticas. Surge a intolerância, surge o fanatismo. Surgem os demagogos, os autoritários. Surgem os tiranetes, à esquerda e à direita. Quando a verdade morre, a liberdade morre em seguida. Aconteceu no século XX. Acontece agora, no século XXI.
De um lado, portanto, as tecnologias que usamos cada vez mais para nos comunicarmos são indiferentes aos fatos – e, consequentemente, hostis à imprensa. De outro, o modelo econômico industrial que sustentava a imprensa está desaparecendo, sem que uma alternativa digital  se consolide na mesma velocidade. Há uma aparente contradição: no auge da pior crise da história da imprensa, nunca houve tanta notícia de qualidade à disposição do leitor. E nunca houve tantos leitores ávidos por jornalismo de boa qualidade. No Brasil e no mundo. Diante de audiências que às vezes somam dezenas, centenas de milhões de pessoas nos principais sites de notícias, como é possível falar em crise do jornalismo? A questão central é econômica. Apenas uma pequenina parcela dessa multidão incontável de leitores topa pagar por jornalismo. Ainda estamos acostumados a ler de graça o que custou muito dinheiro para ser feito.
Não há apenas más notícias. Hábitos podem mudar – e provavelmente mudarão. No Brasil e em alguns outros países, veículos tradicionais que mantiveram e reforçaram a produção de bom jornalismo, mesmo diante das adversidades financeiras, estão conseguindo conquistar cada vez mais assinantes digitais. É o caso do New York Times e do Washington Post, nos Estados Unidos. Ou doFinancial Times, na Inglaterra, e do Le Monde, na França. Ainda é cedo, porém, para asseverar que o caminho escolhido por eles dará certo – e, quem sabe, poderá dar certo para um grande número de jornais e revistas. É cedo para assegurar que a crise passará, cedo ou tarde. Que a imprensa dará neste século a contribuição à democracia que deu no anterior. Mesmo que jornalistas e executivos de veículos tomem todas as decisões certas, as incertezas econômicas, sociais e culturais intrínsecas ao avanço da revolução digital aconselham cautela quanto a prognósticos. O futuro da imprensa talvez não esteja somente ao alcance da imprensa.
Apesar das incertezas, o caminho trilhado por alguns desses veículos tradicionais – a aposta na reportagem, província do bom jornalismo – é a melhor opção disponível. Trata-se do mesmo caminho que percorre, no Brasil, a Infoglobo, maior grupo de mídia impressa do país, que edita ÉPOCA e os jornais O GloboValor Extra, entre dezenas de outros títulos. As intempéries do mercado editorial global não mudaram o compromisso inquebrantável da Infoglobo, construído nos últimos 100 anos, de oferecer um jornalismo essencial a seu leitores, seja no papel, seja no digital. Ao contrário. Redobraram a força e a necessidade desse compromisso público: investir e levar ao leitor o melhor do jornalismo profissional. Reportagens originais, furos, análises profundas e opiniões plurais que extraiam sentido dos fatos do mundo.
Desde a sua criação, em 1998, ÉPOCA tenta cumprir essa missão. Você, cara leitora, caro leitor, é, a um só tempo, testemunha e juiz dos méritos e dos deméritos desse esforço. Do trabalho cotidiano e infatigável de uma equipe acostumada a buscar os padrões de excelência do jornalismo – um jornalismo que informa e ilumina, emociona e surpreende, vibra e incomoda. Da apuração rigorosa e exaustiva de nossos repórteres. Do texto laboriosamente burilado por nossos editores. Das composições pensadas criativamente pelo nosso premiado time de designers e profissionais de imagem. Da checagem dos fatos e do bom uso da língua em cada texto, levados a cabo por nossos diligentes revisores. Do trabalho incessante dos editores de nosso site. De capas, talvez o mais nobre dos elementos de uma revista, capazes de deleitar, fazer pensar e até divertir – às vezes ao mesmo tempo, como nesta edição, com uma ilustração do prestigiado artista Edel Rodriguez, encomendada por nosso diretor de Arte, Alexandre Lucas, mais conhecido como Xandão. É ele, que compõe a equipe da revista desde o início, o talento por trás desta e de tantas outras capas premiadas mundo afora.
Não poderia haver despedida mais apropriada para Xandão. Ele encerra, nesta edição, quase 20 anos de um brilhante trabalho em ÉPOCA. O signatário, que integra a equipe da revista desde 2011, também se despede como editor-chefe. Assumirá outro cargo executivo na Infoglobo. Mas prosseguirá colaborando com ÉPOCA e espera fazer isso com frequência irritante para os leitores mais exigentes.

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