Corrupção no Brasil, uma análise sociológica

Corrupção no Brasil, uma análise sociológica

07JUN
No livro “O Saber Local” (Vozes, 2001), o antropólogo norteamericano Clifford Geertz afirma que “para acompanhar um jogo de beisebol, temos que saber o que é um bastão, uma bastonada, um jogador de esquerda e também como funciona o jogo que contém todos esses elementos”. Assim funciona também com a política e com a corrupção, uma de suas práticas de subterrâneo. “A corrupção na política sempre existiu, faz parte do jogo de interesse e poder desde o nascimento da vida em sociedade. No Império Romano, por exemplo, existia até uma tabela paralela de corrupção feita pelo próprio senado para burlar as leis”, diz José Odair da Silva, historiador e doutor em Ciência da Religião pela PUC-SP.
Talvez algo esteja começando a mudar. Recentemente, acompanhamos o anúncio da raríssima prisão de um político em exercício de mandato executivo, acusado de corrupção. A detenção do governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, surpreendeu a todos que esperavam mais um “final com pizza”. O julgamento político e jurídico de Arruda ainda não ocorreu, mas o início parece mais auspicioso do que em casos semelhantes no passado. No entanto, fica uma questão primordial a ser debatida: como entender a escolha dos brasilienses por Arruda nas eleições de 2006, levando em consideração que em sua biografia já constava o caso da violação do painel eletrônico do Senado, ocorrido em 2001?
Mas, como se sabe, a corrupção vai além da política e está instalada nas relações sociais. E os prejuízos são evidentes, sobretudo em termos de cultura política, prevalecendo a tese de que o mundo é dos espertos e de que a Lei não alcança igualmente a todos. “Uma lógica da malandragem se espalha pelo país como normal e dificulta o estabelecimento de uma cultura cidadã, democrática e especificamente moderna”, lembra Rogério Baptistini Mendes, doutor em Sociologia pela Unesp, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e coordenador do Grupo de Estudos sobre o Brasil Moderno.
É quase uma instituição que todo mundo vê, afirma repudiar, mas até se beneficia dela. É como Alberto Carlos Almeida explica em seu livro “A Cabeça do Brasileiro” (Record, 2007): “Você é a favor da corrupção? Claro que não! E, por acaso já se utilizou pelo menos uma vez na vida do ‘jeitinho brasileiro’? Sem dúvida que sim. Enfim, há culturas mais complacentes com a corrupção do que outras, e a nossa é uma delas”, conta o autor.
Em uma sociedade como a nossa, em que existe uma zona nebulosa entre o certo e o errado e que glorifica o “jeitinho brasileiro” como uma ferramenta da dinâmica social, fica mais fácil entender porque a cultura da corrupção está entre nós. Almeida mostra em seu livro, apoiado pela Pesquisa Social brasileira (PESB), que a corrupção não está restrita às ilicitudes de nossos políticos e governantes. Sob a simpática expressão “jeitinho brasileiro”, ela é socialmente aceita. É esse jeitinho que quebra as regras e se coloca como a zona cinzenta moral, ou seja, entre o certo e o errado. Dependendo das circunstâncias, pode passar rapidamente de errada a certa.
“Uma lógica da malandragem se espalha pelo país como normal e dificulta o estabelecimento de uma cultura cidadã, democrática e especificamente moderna” ROGÉRIO BAPTISTINI MENDES, DOUTOR EM SOCIOLOGIA E PROFESSOR DA FESPSP
Poderíamos nos perguntar: seria o “jetinho brasileiro” a antessala da corrupção? Segundo a PESB, sim. Com base em suas pesquisas descobriu-se que quanto maior a tolerância ao jeitinho, mais se aceita a corrupção. “Quanto maior for a utilização e a aceitação desse meio-termo, maiores serão as chances de que haja uma grande tolerância em relação à corrupção”, explica Almeida. De acordo com a PESB, Almeida verificou que 60% das pessoas consultadas são inclinadas a uma visão de mundo patrimonialista. Em casos mais extremos, 17% da população tolera que alguém se utilize do cargo público como se fosse propriedade particular. Quase ¾ da população brasileira afirmam não considerar que o público deva cuidado por todos, mas apenas pelo governo.
Portanto, não é à toa que Macunaíma, magistralmente descrito por Mário de Andrade, tornou-se o símbolo do herói brasileiro. Se ele estivesse caracterizado com terno, gravata e frequentasse a alta sociedade brasileira certamente estaria até em um círculo mais adequado. Obviamente, faz-se aqui uma análise do ponto de vista político do personagem, concebendo Macunaíma como o típico “herói sem caráter”. Aliás, como o historiador Sérgio Buarque de Holanda escreve em “O Espírito e a Letra: estudos de crítica literária” (Companhia das Letras, 1996), Macunaína já existia em um sem-números de fábulas dos índios caraíbas, ou seja, ele não foi construído por Mário de Andrade, um grande estudioso da nossa cultura, apenas com a força de sua imaginação.
“Quanto maior for a utilização e a aceitação desse meio-termo, maiores serão as chances de que haja uma grande tolerância em relação à corrupção” ALBERTO CARLOS ALMEIDA, SOCIÓLOGO E AUTOR DE “A CABEÇA DO BRASILEIRO”
Como saber em que ponto inicia-se o fenômeno da corrupção? Como entender o paradoxo de conviver com a corrupção, criticando-a como um ato infame, mas em certas situações usando-a em seu próprio benefício?
“A corrupção na política sempre existiu, faz parte do jogo de interesse e poder desde o nascimento da vida em sociedade. No Império Romano, por exemplo, existia até uma tabela paralela de corrupção feita pelo próprio senado para burlar as leis” JOSÉ ODAIR DA SILVA, HISTORIADOR
A corrupção, como mostra Odair da Silva, não é uma exclusividade brasileira. Ela sempre existiu em todos os sistemas e regimes políticos: nas democracias liberais, no socialismo, no fascismo, no nazismo, na social-democracia, em teocracias, governos populistas e ditaduras militares. Mas o esforço de compreensão das raízes da corrupção e da relação da sociedade com esse desvio da lei em um local específico, no caso o Brasil, exige ir além das estatísticas e das definições generalizantes. É necessário analisar minuciosamente a formação social e política do país.
Vivemos, segundo os grandes intérpretes de nossa formação, em uma sociedade calcada nas relações pessoais, familiares, cuja base não estaria alicerçada no princípio de indivíduo e cidadão. É o que nos mostra um dos maiores estudiosos do comportamento do brasileiro, o antropólogo Roberto Da- Matta. Em sua obra “A casa & a Rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil” (Rocco, 2003), ele descreve o Brasil como heterogêneo, desigual, relacional e inclusivo, onde o que conta não é o cidadão, mas a relação que ele tem com o poder, seja esse poder de qualquer nível, do macropoder do Estado ao micropoder do cotidiano. Segundo DaMatta, tal característica permitiria explicar os desvios e variações da noção de cidadania. Frases autoritárias como “Você sabe com quem está falando?” ainda têm valor e efeito. Emblemática, a frase mencionada e analisada pelo antropólogo é uma das derivações possíveis do tão controverso “jeitinho brasileiro”.
Segundo Odair da Silva, o “jeitinho” pode ser encarado de duas formas: pode ter um sentido pejorativo, pois diz que o povo brasileiro arranja sempre um modo de viver sem trabalhar, estudar, pagar impostos e fugindo dos compromissos. Por outro ângulo, o “jeitinho” tem um sentido de criatividade e de esperteza, qualidades que “valorizam” os seus autores. No caso dos políticos enrascados, é a capacidade de improvisar soluções acauteladoras quando tudo parece estar perdido. “É a presença de espírito que dá respostas imediatas para situações embaraçosas, sobretudo respostas de efeito, mas vazias de significado. Em resumo, o “jeitinho” é o instrumento mais usado para deixar como está pra ver como fica”, exemplifica.
Buarque e as Raízes do Brasil
Como mostra Baptistini, a corrupção é endêmica. Ela faz parte de um fenômeno gerado ao longo dos séculos, desde que Portugal instalou aqui uma colônia de exploração apoiada no latifúndio e na escravidão. Essas instituições, sob o domínio de um ente privado que exercia o poder por delegação da Coroa, estão na base da constituição de uma sociedade patriarcal, na qual há concentração de poder e prestígio na figura do senhor rural. Este, separado da metrópole por um oceano, fazia confundir o seu mando pessoal com um verdadeiro poder de Estado, expressão de sua vontade particular.
17% Da população tolera que alguém se utilize do cargo público como se fosse propriedade particular.
60% Das pessoas consultadas são inclinadas a uma visão de mundo patrimonialista
Por essa razão, é fundamental ressaltar alguns pontos como a influência determinante da colônia portuguesa na formação da nossa cultura e mentalidade. Como diria o sociólogo e antropólogo Marcel Mauss em “Sociologia e Antropologia” (Cosac Naify, 2005), toda interpretação deve fazer coincidir a objetividade da análise histórica ou comparativa com a subjetividade da experiência vivida. E como pensar nos aspectos da nossa formação sem falar no clássico livro de Sérgio Buarque de Holanda, “Raízes do Brasil”, cuja primeira edição é de 1936?
No capítulo “O Homem Cordial”, Sérgio Buarque inicia a sua análise explicando que o Estado não é – ou não deve ser – a ampliação do círculo familiar. Mas, como lembra Baptistini, uma das raízes sociológicas da corrupção política é a ausência de separação entre os espaços público e privado, sobretudo quando a burocracia do Estado localizava-se em Portugal e a colônia organizava-se com base na exploração das terras e das pessoas no contexto do latifúndio escravocrata. Essa é a base do patriarcalismo, com a concentração do poder e do prestígio na figura do senhor rural.
Junta-se a isso o mando privado dos senhores que se prolonga no tempo e assume característica peculiar, com o retraimento do latifúndio aos próprios limites, configurando uma verdadeira autarquia rural. “Nesta, como informa Faoro, em “Os Donos do Poder”, o senhor de terras e de gente se transmuta no senhor absoluto de um pequeno reino. O prestígio outrora haurido das implícitas delegações de autoridade se transmuta no de senhor de um pequeno reino, que produz quase tudo”, explica Baptistini.
A confusão entre o latifúndio e o Estado não se resolve com a superação de uma por outra, mas é uma transação que conduz ao acerto que as preserva no país independente, liberto da metrópole portuguesa. “O estamento político, alargado desde o Código de Processo Penal de 1832 e do Ato Adicional de 1834, que consagram a relação entre as autonomias locais e o poder central, entre o patriarcalismo e o patrimonialismo, consagra o exercício do poder como mando privado, enquanto a nação padece sob o latifúndio e a escravidão”, resume Baptistini.
“Conforme esclarece José Murilo de Carvalho, em ‘Os Bestializados’, o povo, que pelo ideário republicano deveria ter sido o protagonista dos acontecimentos, assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se passava, julgando ver talvez uma parada militar” ROGÉRIO BAPTISTINI MENDES, DOUTOR EM SOCIOLOGIA E PROFESSOR DA FESPSP
Dessa forma, o Brasil independente avança em direção ao século 20 sem uma população verdadeiramente livre, com um Estado parasitário, lugar de privilégios, e uma ordem privada marcada pelo mandonismo dos senhores rurais. Para Baptistini, “não causa espanto que, ao final do período, o advento da forma republicana se dê ‘pelo alto’, respeitando o status quo. Conforme esclarece José Murilo de Carvalho, em “Os Bestializados”, o povo, que pelo ideário republicano deveria ter sido o protagonista dos acontecimentos, assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se passava, julgando ver talvez uma parada militar”.
Um dos elementos para a compreensão desse fenômeno seria o de que o nosso histórico social de corrupção tem como alimento a ausência de uma cultura pública robusta e a oligarquização das decisões. “Elas se somaram, ao longo do tempo, aos resquícios da escravidão e do mandonismo privado, à cidadania como concessão e à ideia de que o Estado tem precedência sobre a sociedade. Assim, não se fortaleceu entre nós o ethos republicano e democrático, mas sim o seu oposto”, finaliza Baptistini.
Na análise do jornalista e historiador Hernâni Donato, outros elementos são importantes. “Basta percorrer a História. Subiremos os séculos flanqueados por endemia corruptiva que remete ao ‘Descobrimento’. Não foi o que o escrivão Caminha tentou fazer com o rei, na sua famosa carta? Elogiou a terra com o que elogiava o esforço real (ainda que secreto) para chegar a ela. E assinava com um pedido de graça em favor do genro. Verdade que ela, a corrupção, viceja onde haja relacionamento entre o que pode e o que deseja. Lê-se no primeiro livro de História guerreira como foi que fornecedores mudaram a sorte de batalha no Peloponeso, promovendo orgia total para gáudio dos compradores. Depois, e isto me causa arrepios quando me vem à mente a frase terribilíssima do padre Vieira ao soberano que o mandara identificar corrupção e corruptor no Brasil. Vieira confirmou e alertou mais ou menos assim: ‘e não tente Vossa Majestade corrigir de todo esse mal, porque, então, ficaria sem com quem governar’. Não é de tirar o sono?”, relata.
Vocabulário da Corrupção
CORRUPÇÃO
Segundo Deonísio da Silva em “De onde vêm as palavras”, a palavra corrupção vem do latim corruptione, apodrecimento, decomposição. Foi inicialmente empregada ao fim que todos teremos após a morte. O vocábulo designa também atos ilícitos praticados, sobretudo, por políticos, os corrompidos, e empresários, os corruptores. Entretanto, essa palavra costumava se referir a declínio moral como no caso do livro escrito por Mikhail Shcherbatov, “Da Corrupção da Moral na Rússia no século XVIII”. Uma forma de começar a compreender o nível de tolerância para a corrupção – um dos terrenos da impunidade – é observar a distinção entre privado e público. O que é privado é traçado menos claramente em algumas culturas. Para o historiador Peter Burke, a preocupação pública com a corrupção é em geral um fenômeno de transição, emergindo quando uma cultura particular está se afastando do sistema patrono-cliente em direção à meritocracia.
NEPOTISMO
Falar de corrupção na política sem citar o nepotismo é como falar de política sem mencionar o processo eleitoral. A origem dessa palavra é no mínimo curiosa. Nepotismo vem de papa. Nepo quer dizer em latim “sobrinho”. “Antigamente era costume os sobrinhos do papa terem cargos, regalias por serem seus parentes. Entretanto, os papas eram proibidos de ter filhos, pois praticavam o celibato”, conta Fátima Mesquita, autora de “Almanaque de corruptos, ditadores e tiranos nojentos” (Panda Books). Mas como era sabido, a maioria tinha filhos sim, mas os apresentava como sobrinhos. Mas o nepotismo não é um privilégio de nossas terras. Na história política, encontramos essa prática em países como os Estados Unidos. Mas em países como a China ninguém vê problema no nepotismo. Tanto que é comum empregarem seus parentes na política. Agora quem ganha o prêmio de maior nepotismo da história é o presidente Maumoon Abdul Gayoon das Ilhas Malvinas. Ele conseguiu empregar 11 parentes em seu gabinete, sem falar nos amigos escalados para outros postos
LAVAGEM DE DINHEIRO
Uma expressão corriqueira no cenário da corrupção é lavagem de dinheiro. Por incrível que pareça, ela tem origem na lavagem das contas dos colares usados pelos fiéis do candomblé, religião de origem africana. De vez em quando eles possuem o costume de fazer a lavagem das contas em uma cerimônia de purificação. Essa expressão surgiu em uma época que os Estados Unidos proibiu a bebida alcoólica. Apesar da lei, todo mundo continuou bebendo, mas os vendedores não tinham como justificar a venda, e pra resolver o problema os reis da fabricação abriram lavanderias como empresas de fachada.
“TUDO ACABA EM PIZZA”
Impossível um brasileiro nunca ter ouvido ou falado a triste frase: “E tudo acaba em pizza.” O significado dessa frase é que algo errado terminou sem qualquer punição e surgiu no futebol. Em especial na Sociedade Esportiva Palmeiras, dita por Milton Peruzzi, falecido em 2001. A expressão teve origem na década de 1960 quando o Palmeiras enfrentava uma crise de cartolas. Por conta disso, uma briga se iniciou no clube e quatorze horas depois ela continuava. O problema é que deu fome em todo mundo e eles então resolveram ir a uma pizzaria. Depois de muito chope e pizza, a paz voltou e a briga terminou. Peruzzi que era também jornalista e trabalhava na Gazeta Esportiva aproveitou e no dia seguinte colocou a manchete: Crise do palmeiras termina em pizza.
Donato nos lembra de quando a legislação administrativa colonial portuguesa esteve inçada por restrições, admoestações, ameaças de punição. “Mas, digam-me se não foi corrupção aquilo do regente Pedro (1822) de pagar três meses de soldo aos soldados de Avilez, com o que a tropa de veteranos portugueses deixou o Rio de Janeiro que militarmente bem poderia manter frente a populares entusiasmados, porém, desarmados e despreparados. E quando Portugal pagou a Villegaignon o que este gastara na França Antártica, para que não voltasse à tentativa, não foi corrupção? E aquela caixa plena de ouro vinda de Cuiabá e de São Paulo expedida ao rei a quem chegou cheia de… chumbo, quanta corrupção espalhou! E tudo isso é História e não estória. Já lá dizia o velho refrão: ‘temos por quem puxar!’. E não esqueçamos de que o cinema, a tevê, os jornais revelam a presença da corrupção na vida política e administrativa nos Estados Unidos. Se lá eles não conseguem extirpar esse mal…”
Na história do Brasil, encontramos referências à corrupção durante todo o período colonial, período imperial e todas as fases da república
LUIZ ANTÔNIO DIAS, DOUTOR EM HISTÓRIA SOCIAL E PROFESSOR DA PUC-SP
Hernani também acredita que a corrupção não se extinga, pelo menos pela adoção de medidas punitivas. Mas estaremos melhorando no combate ao processo corruptivo quando na escola, na igreja, no clube, uma imprensa livre não só de mordaças, mas também de interesses sugeridos por volumosa propaganda, lembrem ao povo que o interesse geral está acima do pessoal ou regional. “Principalmente regional. Resquício da disciplina imposta pelo coronelismo. A falta de cultura geral, especialmente a cívico-política mantém o juízo crítico ao nível do localismo: ofendeu o nosso deputado, ofendeu a mim. Logo, no voto, hei de vingá-lo”, diz Donato.
A corrupção nossa de cada dia
Segundo Luiz Antonio Dias, doutor em História Social e professor da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP, a corrupção não é uma novidade na política brasileira ou no mundo. Não é uma característica de um regime ou forma de governo. Todos eles, em menor ou maior grau são atingidos pela corrupção. “Evidentemente, em alguns ela é maior, menos perceptível, menos divulgada, mais tolerada. Na história do Brasil, encontramos referências à corrupção durante todo o período colonial, período imperial e todas as fases da república. Luiz Felipe de Alencastro, em sua obra “O Trato dos Viventes” mostra que desde o início da colonização o Estado português tentou criar mecanismos para evitar o contrabando e a corrupção”, lembra Dias.
A vinda da família real para o Brasil, em 1808, em certa medida favoreceu o “tráfico de influências”. Laurentino Gomes, em seu livro 1808, apresenta a prática da “caixinha” de 17% sobre os pagamentos e saques no Tesouro Público. Sem esse “pagamento” o processo não avançava. Essa prática existe até hoje, com variações apenas no percentual da “caixinha”. Gomes apresenta também uma dupla de funcionários que passou para o anedotário carioca: Azevedo e Targini responsáveis, respectivamente, pelas compras e pagamentos do governo de D. João VI, enriqueceram “misteriosamente” nesse período e foram promovidos de Barão a Visconde (do Rio Seco e de São Lourenço, na ordem). O povo carioca cantava a roubalheira: “Quem furta pouco é ladrão. Quem furta muito é Barão. Quem mais furta e esconde, passa de Barão a Visconde”.
“O eleitor recebia um pé de botina e era levado à votação. Tendo votado, ganhava o outro pé e participação em uma churrascada”
HERNÂNI DONATO, JORNALISTA E HISTORIADOR
Processo eleitoral e político
No processo eleitoral a corrupção é poderosa e marcante, chegando a se tornar lembrança na infância de Hernani. Quando menino, ele se lembra que, lá pelos anos 1930, viu o caminhão do senhor da política local recolher eleitores, o que agora é proibido. Reuniam-se em um local determinado, chamado de curral. “O eleitor recebia um pé de botina e era levado à votação. Tendo votado, ganhava o outro pé e participação em uma churrascada. E voltava ao bairro ou ao sítio, a pé. Corrupção clara e simples e que decidia (decide?) eleições. Essa, a corrupção modesta, digamos, popular. Mas e o mensalão, a cueca, a meia recheada e o muito que permanece secreto ou se consuma além-fronteiras?”, relata Donato. Sem falar na lógica do “se votar contra mim, olha que eu revelo ao distinto público o que sei a seu respeito”.
Em uma análise mais sociológica, do processo eleitoral, a cultura que favorece à corrupção é reafirmada na lógica pessoalista orientando a disputa. A discussão de projetos para o país fica em plano secundário em relação ao enaltecimento das personalidades. O sociólogo Rogério Baptistini Mendes sugere uma citação de Alberto Torres, extraída de seu livro de 1914, “O Problema Nacional Brasileiro”: “À força de alheação da realidade, a política chegou ao cúmulo do absurdo, constituindo em meio de nossa nacionalidade nova, onde todos os elementos se propunham a impulsionar e fomentar um surto social robusto e progressivo, uma classe ficial, verdadeira superfetação, ingênua e francamente estranha a todos os interesses, onde, quase sempre com a maior boa-fé, o brilho das fórmulas e o calor das imagens não passam de pretextos para as lutas de conquista e a conservação de posições”. E Baptistini completa: “De fato, passado quase um século ainda estamos às voltas com o mesmo problema: Lula ou FHC, Dilma ou Serra. Nada de projetos para o país, a não ser o que lustra as pessoalidades na propaganda eleitoral”.
Na sua opinião, uma das hipóteses para a compreensão dela no cenário eleitoral é o particularismo das soluções políticas que nos legaram o país independente e a República. “Soluções pelo alto, sem apoio e participação popular, 1822 e 1889 marcam uma transação entre elites de origem pública e privada – elites de Estado e elites socioeconômicas – cujo fim é manter a lógica oligárquica das decisões e o controle sobre o povo”, explica o sociólogo.
A pergunta que nos fazemos a essa altura do texto é se existe uma solução para este mal. Não há uma resposta definitiva, mas podemos arriscar alguns caminhos. “Um deles tem início no cumprimento da Lei e na celeridade da Justiça. Entretanto, o mais importante é alcançar a estrutura da questão por meio da promoção de uma profunda reforma intelectual e moral que alcance a sociedade e estabeleça a crença nas leis e instituições pela educação e pelo exemplo”, indica Baptistini.
O ex-presidente da República José Sarney, atual presidente do Senado, teve seu nome recentemente envolvido em escândalos políticos.
É claro que junto à corrupção na política se une a ideia da “memória curta” do brasileiro, expressão usada para caracterizar o eleitor que mesmo sabendo das ilicitudes de seu candidato, vota nele novamente. Como explicar essa atitude? Por outro lado, ao simplesmente afirmarmos que o brasileiro tem memória curta, de certa forma responsabilizamos a vítima pelo crime. “Numa longa história de exclusão popular, mandonismos privados e privilégios oligárquicos, os ‘de baixo’ naturalizaram a ideia de que ‘manda quem pode e obedece quem tem juízo’, ou seja: de que o andar ‘de cima’ tudo pode”, esclarece o professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. O fato é que políticos acusados de corrupção ou com fortes indícios de praticar atos ilícitos são eleitos todos os anos no Brasil.
O Brasil está caminhando para a consolidação de conquistas em todos os campos da organização social, política e econômica. Mas ainda teremos que conviver com muitos fatos que nos envergonham. E as obras de Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda, produzidas em meados do século passado, continuam a nos ajudar a encontrar respostas para a compreensão desse nosso país.
Transparência Brasil
Fundada em 2000 por um grupo de empresários, intelectuais e associações não governamentais, a ONG Transparência Brasil tem como objetivo o combate à corrupção no Brasil. A organização possui um site que disponibiliza um excelente banco de dados com informações detalhadas sobre políticos e candidatos a eleição, além de promover pesquisas e estudos sobre o tema. O jornalista, bacharel em matemática e mestre em Filosofia da Ciência Claudio Weber Abramo, diretor executivo da Transparência Brasil, mantém um blog hospedado no portal IG (http://colunistas.ig.com.br/claudioabramo)
Mais informações:
http://www.transparenciabrasil.org.br
“Numa longa história de exclusão popular, mandonismos privados e privilégios oligárquicos, os ‘de baixo’ naturalizaram a ideia de que ‘manda quem pode e obedece quem tem juízo’, ou seja: de que o andar ‘de cima’ tudo pode” ROGÉRIO BAPTISTINI MENDES, DOUTOR EM SOCIOLOGIA E PROFESSOR DA FESPSP
Por Revista Sociologia/Priscila Gorzoni

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