Quando a ciência encontra Deus


Quando a ciência encontra Deus
Células-tronco, origem da vida e outros temas fizeram parte de encontro que reuniu no Vaticano religiosos e cientistas latino-americanos - entre eles brasileiros. É uma demonstração de que, apesar das divergências, a Igreja Católica está aberta a ouvir o que diz a comunidade científica mundial sobre assuntos importantes da atualidade



Cilene Pereira17.11.17 - 18h00



A manhã do dia 24 de outubro foi especial para o cientista brasileiro Stevens Rehen. Professor titular do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor de Pesquisa do Instituto D´Or de Pesquisa e Ensino, Stevens está habituado a dar palestras a seus pares no Brasil e no mundo. Mas naquela terça-feira ele iria falar dentro da sala da Pontificia Accademia delle Scienze, a academia de ciências do Vaticano. Sediada na Casina Pio IV, uma bela construção erguida em 1561 para servir de residência de verão ao Papa Pio IV, a instituição é a porta aberta pela Igreja Católica à ciência e suas constatações. É onde a ciência encontra Deus.

Mesmo para um ateu como Stevens, ser convidado a falar de ciência dentro do Vaticano é um momento distinto. Historicamente, a relação entre a comunidade científica e os religiosos foi pautada por divergências, algumas permanentes e, outras, superadas, porém responsáveis por grandes cicatrizes. O caso mais emblemático foi o da condenação do astrônomo italiano Galileu Galilei e sua reabilitação somente séculos depois (leia box). Participar de um encontro no qual o objetivo é ouvir, no caso da Igreja, e ser ouvido, no caso dos pesquisadores, é sem dúvida uma ocasião única na carreira de qualquer pesquisador. “Fiquei surpreso. Nunca me imaginei falando no Vaticano”, diz. “Foi uma experiência curiosa.”


SEM CENSURA

O cientista foi convidado a falar sobre seu trabalho mostrando como o vírus zika afeta células precursoras do sistema nervoso. A pesquisa, que teve a participação da UFRJ, do Instituto D´Or e da Unicamp (SP), foi publicada na Science, uma das mais respeitadas revistas científicas do mundo. Para chegar a essa conclusão, o grupo usou células-tronco pluripotentes induzidas, estruturas obtidas por meio da reprogramação de células adultas, retiradas da pele, por exemplo, e manipuladas geneticamente de forma a chegarem a um estado semelhante ao de uma célula embrionária (ainda sem especialização). Além dele, mais três brasileiros falaram durante o encontro, que durou dois dias: o físico Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências, o também físico Vanderlei Bagnato, da Universidade Federal de São Carlos, e o engenheiro agrônomo Elibio Rech, da Embrapa.



1 de 3 As reuniões, que contam com o apoio do Papa Francisco, ocorrem na Casina Pio IV.






2 de 3 As reuniões, que contam com o apoio do Papa Francisco, ocorrem na Casina Pio IV.

Foto: © Alessandro Bianchi / Reuters




3 de 3 Os brasileiros Stevens, Bagnato, Davidovich e Rech (da esquerda à direita).




O tema do encontro, que reuniu cientistas da América Latina, foi biologia celular e genética, assunto dos mais relevantes na agenda científica atual. Entre as discussões, houve uma sobre a origem da vida, um dos pontos sobre os quais Igreja e ciência divergem. Quem o levou à plateia foi o bioquímico chileno Rafael Vicuña. Na audiência estava o arcebispo argentino Marcelo Sorondo, chanceler da academia. Assim como Vicuña, todos os outros cientistas falaram livremente, sem pressão ou interrupção mesmo quando apresentaram visões diferentes das defendidas pela Igreja. “Eu me senti como se estivesse em uma reunião científica normal. Não houve qualquer tipo de intervenção religiosa”, conta Stevens.


O respeito ao que diz a ciência faz parte dos princípios da academia católica. Mas a postura do Papa Francisco de sintonia com os tempos atuais tem servido de estímulo ao debate livre. Pontos de atrito continuam existindo, é verdade. Em sua mensagem aos pesquisadores, Francisco lembrou o Papa João Paulo II e sua recomendação, por exemplo, de que não deveria haver o que chamou de manipulação genética indiscriminada. No entanto, o Papa pontuou: “A criatividade humana não pode ser suprimida. Se um artista não pode ser impedido de usar sua criatividade, também não podem aqueles que possuem talentos particulares para os progressos na ciência de usá-los para servir aos outros”, escreveu Francisco.

Galileu e o brasileiro



Foi com o forte empenho do brasileiro Carlos Chagas Filho que a Igreja Católica promoveu um dos seus mais importantes gestos de conciliação com a ciência. Presidente da Academia entre 1972 e 1988, o cientista trabalhou para que o Vaticano reabilitasse o astrônomo Galileu Galilei, condenado em 1633 pela Inquisição a viver recluso em casa até o fim da vida. Galileu defendia a ideia de que era a Terra que girava em torno do Sol, tese contrária à da Igreja à época, mas que a ciência provou ser verdadeira. Obrigado também a abjurar publicamente, o astrônomo teve sua reabilitação feita pela Igreja em 1992, quando a instituição admitiu que ele estava certo.

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