Por que a febre amarela virou uma ameaça para a região mais populosa do país? No maior surto da história recente do Brasil, a febre amarela chega às matas da populosa Região Sudeste – e à beira de condomínios de luxo. Alcançará as cidades e seus moradores?
Por que a febre amarela virou uma ameaça para a região mais populosa do país?
No maior surto da história recente do Brasil, a febre amarela chega às matas da populosa Região Sudeste – e à beira de condomínios de luxo. Alcançará as cidades e seus moradores?
MARCELA BUSCATO
21/11/2017 - 08h01 - Atualizado 21/11/2017 10h09
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BUSCA
Agentes da Zoonoses de Jundiaí, São Paulo, procuram macacos mortos. Só neste ano foram 196 – e, desses, 68 com o vírus da febre amarela (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
“Alguém tem medo de macaco?”, pergunta Freddy Giorgi, lançando pedaços da banana que acabara de descascar na direção das árvores. Os galhos quase tocam o terraço da casa em que mora com a família, em um condomínio de luxo de Jundiaí, a 60 quilômetros de São Paulo. Acompanha o gesto com assobios, normalmente um chamado irresistível para os saguis que habitam a mata ao redor, nos limites da zona urbana com a rural, a apenas 8 quilômetros do centro. Há 17 anos, Giorgi, ex-empresário, trocou a vida na capital pela tranquilidade do condomínio, a apenas 30 minutos da metrópole. Entre todos os terrenos, criados a partir do loteamento de uma fazenda de seu pai, a família escolheu para construir a casa na área em frente à vegetação típica da região, que mescla remanescentes de Mata Atlântica a manchas de Cerrado. A casa envidraçada, projetada pela mulher de Giorgi, a arquiteta Beatriz, de 64 anos, debruça-se sobre a vegetação. A área da piscina se abre até os limites da mata. Sentados no terraço, Giorgi, de 71 anos, Beatriz e o casal de filhos, Vitoria, de 23 anos, e Lucas, de 21, acostumaram-se a chamar pelos saguis. Habituaram-se a observar o deslocamento lento até de uma família inteira de bugios, um macaco maior e mais arredio. O acordar todas as manhãs era acompanhado pelo ronco gutural da espécie ao longe. Desde outubro, o barulho dos bugios rareou a cada amanhecer, até cessar. Também desapareceram os sauás, outra espécie de macaco de médio porte. “É o segundo dia que não vejo sauás. Estou preocupado”, diz Giorgi. Os agentes do Centro de Vigilância e Controle de Zoonoses que visitam a casa inclinam a cabeça para observar o topo das árvores, em busca dos macacos. As folhas se mexem. Pássaros apenas. A presença dos agentes na casa da família Giorgi dá pistas sobre o sumiço dos animais. Desde agosto, depois de um macaco morto ser encontrado na divisa da cidade com Louveira, funcionários da prefeitura visitam propriedades da zona rural para orientar os moradores. Explicam sobre uma doença que afetou os macacos de maneira sem precedentes na região e se tornou uma ameaça real também para os humanos: a febre amarela.
Em 12 meses, o Brasil teve 779 casos – quase o mesmo número dos últimos 36 anos
Transmitida atualmente pela picada de mosquitos silvestres, que vivem na copa das árvores na floresta e à beira das matas, a doença é causada por um vírus do mesmo tipo dos que causam dengue, zika e chikungunya. Porém, mais letal. A doença mata um terço das pessoas com sintomas: febre súbita, vômitos, dores de cabeça e no corpo. Nesses quadros, há comprometimento irreversível do fígado e dos rins. Em 2017, o Brasil enfrenta o pior surto de febre amarela desde que o governo começou a registrar os casos, nos anos 1980. As primeiras infecções começaram no ano passado. Nos 12 meses de julho de 2016 a junho de 2017, morreram 262 pessoas. Foram 779 casos, quase o mesmo número total ocorrido nos 36 anos anteriores, 797.
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Os casos que se costumavam contar às dezenas, principalmente na região amazônica, deram lugar às centenas na região mais populosa do país, o Sudeste. Concentraram-se nos estados de Minas Gerais (475), Espírito Santo (306) e Rio de Janeiro (29 casos) – esses dois últimos considerados até então regiões de menor risco. No estado de São Paulo, dos 23 casos em humanos confirmados como infecção local, 14 ocorreram na área sem recomendação de vacina, mais ao leste. “Houve uma mudança no perfil da
doença: ela está se aproximando das grandes cidades”, diz o médico virologista Maurício Nogueira, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia. Isso explica por que famílias como a Giorgi, em Jundiaí, instaladas em confortáveis condomínios à beira da maior metrópole da América do Sul, viram-se cara a cara com uma doença que ocupa, no imaginário brasileiro, a categoria de moléstia tropical sepultada pelo tempo – ou, pelo menos, empurrada pela urbanização para as florestas ao Norte.
À PROCURA
Beatriz e Freddy Giorgi, em sua casa, em Jundiaí, São Paulo. O barulho dos bugios ao amanhecer desapareceu (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
A reemergência da febre amarela lembra a chegada daquele parente distante, que tememos ter vindo para ficar: é familiar, mas incômoda. O vírus desembarcou no país em 1685, no Recife, depois de viajar a bordo de um navio vindo da África e que fizera escala nas Antilhas, então assoladas por uma epidemia. No Brasil imperial, dizimava milhares a cada surto. O desenvolvimento, em 1937, de uma vacina altamente eficaz, a mesma usada até hoje, foi fundamental para transformar a febre amarela em doença dos livros de história para a maioria dos brasileiros. A erradicação nos anos 1950 do mosquito Aedes
aegypti – sim, o mesmo contra o qual o Brasil luta novamente hoje – também foi importante. Na época, ele disseminava o vírus da febre amarela pelas cidades. Mas uma campanha agressiva para erradicá-lo, à base de um pesticida poderoso, o DDT, hoje proibido, exterminou temporariamente a espécie do Brasil. Desde 1942, quando os três últimos casos de febre amarela transmitida por Aedes foram confirmados, em Sena Madureira, no Acre, não há registro no Brasil da forma urbana da doença.
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O deslocamento dos surtos para o Sudeste preocupa. A aproximação do vírus das grandes cidades aumenta o risco de ele se tornar novamente parceiro do Aedes. O mosquito, que bota ovos em água parada e prefere o clima quente para se reproduzir, fez das cidades brasileiras um lar muito confortável – como mostram as epidemias de dengue a atingir o país desde os anos 1980 e, nos últimos anos, os surtos de zika e chikungunya. Eis um cenário incômodo. “É uma combinação de alto risco: temos o vírus, o Aedes e pessoas não vacinadas”, diz Nogueira.
Especialistas dizem que existe o risco de a febre amarela ser transmitida pelo Aedes aegypti
Ninguém sabe se é uma questão de tempo o Aedes se infectar com o vírus da febre amarela. “O risco de reurbanização [da febre amarela] sempre existiu”, diz o médico Pedro Vasconcelos, diretor do Instituto Evandro Chagas, em Belém. Casos isolados, geralmente importados, aparecem quase anualmente, mesmo em cidades como São Paulo. Em um estudo publicado em 2012, pesquisadores estrangeiros calcularam o risco de o vírus se espalhar em diversos países. Na Região Sudeste do Brasil, em meses quentes, estimaram que uma pessoa infectada poderia espalhar o vírus para cerca de três pessoas. O que acendeu o sinal de alerta desta vez foi a chegada do vírus às matas da região – o que pode torná-las um reservatório. Especialistas como Vasconcelos são otimistas. “O que nos dá um pouco mais de confiança é que nunca achamos um Aedes com o vírus.”
Uma possível explicação é que, talvez, para o vírus se alastrar pelo Aedes, precise haver uma quantidade maior do mosquito nas cidades do que há hoje. “Em Angola, onde houve uma epidemia urbana da doença no ano passado, os níveis de infestação chegam a 60% dos imóveis”, diz Vasconcelos. “No Brasil, quando altos, ficam em 5%.” Especula-se também a possibilidade de a espécie ter perdido a capacidade de transmitir o vírus da febre amarela. Mas não foi isso que concluiu a bióloga Dinair Lima, do Instituto Oswaldo Cruz. Em um laboratório de alta segurança, em Paris, Dinair deixou mosquitos Aedes, provenientes do Rio de Janeiro, alimentarem-se com sangue infectado com o vírus. Duas semanas depois, 10% dos mosquitos tinham partículas virais na saliva e poderiam transmitir a doença. “Os do Rio de Janeiro se mostraram mais suscetíveis que os de Manaus, região endêmica”, diz Dinair. Quando apareceram casos no Rio, no início do ano, não houve a reurbanização. Talvez existam barreiras. Uma pista vem de outros vírus disseminados pelo mosquito. Um estudo de Ribeirão Preto mostrou que o vírus da dengue leva vantagem sobre o da febre amarela se infectar antes ou ao mesmo tempo um primo do Aedes aegypti.
Um surto sem precedentes (Foto: Arte/ÉPOCA)
Nas últimas décadas, a transmissão no Brasil se restringiu às picadas dos mosquitos silvestres, dos gêneros Haemagogus e Sabethes, que não se aventuram longe das matas. Macacos, especialmente os bugios, costumam ser as primeiras vítimas da doença, antes que ela chegue aos humanos. Quando encontrados mortos em grande número, servem de alerta – como aconteceu em Jundiaí. Entre 2008 e o ano passado, o Centro de Zoonoses havia recolhido cerca de 30 macacos mortos. Neste ano, até novembro, foram 196. Exames apontaram o vírus em 68. “As pessoas estão assustadas e avisam mais sobre os animais mortos”, diz o veterinário Luis Gustavo Nascimento, da Zoonoses. “Mas os macacos estão morrendo mais.”
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Nascimento vem criando novas rotinas para lidar com o surto. Na sala de necrópsia, pega o corpo de um sagui e coloca sobre a mesa. Com o bisturi, raspa a pelagem do abdome e faz uma incisão do peito à barriga. Retira pedaços de órgãos num ritual: “Vou descendo: coração, pulmão, fígado, baço, rim e intestino”. Ao agente de Zoonoses Donizete Estevão cabe esfacelar, geralmente num golpe certeiro, o crânio do animal. O cérebro é o primeiro órgão a entrar em decomposição. Dependendo de quanto tempo demorou para o corpo do animal ser encontrado e recolhido, pode ser que não exista nenhuma amostra aproveitável para quem procura o vírus da febre amarela. As análises são feitas no Instituto Adolfo Lutz, na capital paulista, para onde as amostras viajam no mesmo dia. Como o transporte só ocorre uma vez na semana, as necrópsias são feitas no mesmo dia. Em uma única quinta-feira de outubro, foram 38. “Tinha dia que esta sala parecia acidente de avião”, diz Nascimento, apontando com o bisturi para o entorno. “Tinha saco preto para todo lado.” Em 9 de novembro, depois que a pior onda do surto passou pela região, eram apenas sete animais: seis saguis de Jundiaí e um trazido pela Zoonoses da vizinha Cabreúva.
A situação não foi atípica apenas na Zoonoses. “Tenho 30 anos de profissão e nunca mais quero passar por uma situação como essa”, afirma a veterinária Cristina Adania, coordenadora de fauna da Associação Mata Ciliar, uma organização não governamental em Jundiaí que reabilita animais silvestres. “Nunca chorei tanto.” A equipe da entidade chegou a ser acionada para tentar salvar macacos doentes. Em uma ocasião, encontraram cinco bugios mortos no chão. Viram um filhote descer das árvores e tentar acordar a mãe morta. Encaminhados por prefeituras de cidades vizinhas, como Louveira, alguns bugios doentes chegaram ao centro de reabilitação. Dos 42 com suspeita da doença, apenas um sobreviveu. Assim como para os humanos, não há tratamento específico.
ANÁLISE
O veterinário Luis Gustavo Nascimento faz necrópsia em um sagui. Em um dia, foram 38 desses procedimentos (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Jundiaí não tem caso de suspeita de febre amarela entre humanos. Mas a gravidade da epidemia entre macacos mostra a entrada do vírus numa região de Mata Atlântica, onde historicamente não havia casos de transmissão local. Na cidade de São Paulo, três macacos foram encontrados mortos com o vírus – o governo estadual suspeita que um quarto foi infectado na vizinha Cajamar.
Em retrospecto, o avanço da febre amarela foi previsível. Até 1999, os focos constantes dos surtos se circunscreviam à Região Norte, Centro-Oeste, parte do Maranhão e casos esporádicos ao oeste de Minas Gerais. Entre 2000 e 2008, há um claro avanço em direção ao Sudeste e Sul – até chegar ao surto de grandes proporções deste ano em Minas Gerais, que parece ter impulsionado o avanço do vírus para a área mais populosa do país. Apesar do monitoramento, o surto atual se revela mais fulminante que o esperado. “A capacidade e a velocidade do mosquito surpreenderam”, diz Regiane de Paula, diretora do Centro de Vigilância Epidemiológica do Estado de São Paulo.
A baixa cobertura vacinal em Minas gerais pode ter contribuído para o surto no sudeste
Ainda não há estudos que expliquem as causas. O desequilíbrio ecológico causado pelo rompimento de uma barreira de rejeitos minerais há dois anos em Mariana, Minas Gerais, que contaminou o Rio Doce, é uma hipótese, mas sem comprovação. Outras possibilidades são a reconstrução de corredores ecológicos, zonas de matas por onde os mosquitos e macacos com o vírus circulam, e a integração entre as zonas urbanas e rurais. “Quase não existe mais essa delimitação. Há uma conurbação com condomínios à beira da mata”, diz o sanitarista Fábio Alves, secretário de Saúde de Itatiba, cidade vizinha a Jundiaí. Neste ano, o município registrou dois casos. Um dos pacientes morreu: um homem de 76 anos, morador de um condomínio.
Enquanto faltam estudos para comprovar as hipóteses de avanço, uma emerge em números concretos. “A baixa cobertura vacinal de cidades de Minas Gerais foi fundamental para a expansão do surto”, afirma Pedro Tauil, da Universidade de Brasília. Todo o estado de Minas Gerais é área de recomendação permanente de vacina. Mas há casos como o município de Itambacuri – 21 casos registrados – que só tinha vacinado 40% da população. O ideal é 95%. Não se previa que isso ia acontecer”, afirma a enfermeira Janaina Almeida, diretora da Vigilância Epidemiológica. “A população não buscava a vacina.” Especialistas como Tauil afirmam que a obrigação cabe aos municípios. “É preciso ter equipes volantes na zona rural. Não adianta mandar ir ao posto”, afirma Tauil.
Manter a cobertura vacinal alta nas regiões endêmicas é fundamental não apenas para evitar a disseminação do vírus. Quando a imunização é feita em períodos de surto, há certo pânico da população. Pessoas com contra-indicação (como gestantes e idosos) acabam tomando a vacina – e podem sofrer efeitos colaterais. A vacina é segura, mas eventos adversos graves podem acontecer a cada 400 mil doses. Entre eles há o desenvolvimento de um tipo de febre amarela vacinal. Outro bom motivo para monitorar a cobertura é evitar uma possível epidemia. Nesse cenário, existe o risco de não haver suprimento de vacina suficiente.
O macaco bugio. Nos surtos, são os primeiros a morrer e servem de alerta (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA, AFP)
Em São Paulo, o governo estuda aumentar a área de vacinação no estado. Esbarram nesse empecilho. “Não há vacina para todo mundo”, diz a biomédica Regiane, do Centro de Vigilância Epidemiológica do Estado de São Paulo. A capacidade de produção da Bio-Manguinhos, fábrica de vacinas do governo brasileiro, é de 9 milhões de doses por mês, para atender o país todo, além da demanda da Organização Mundial da Saúde (OMS). “Essa linha de produção também faz vacina contra rubéola, sarampo e caxumba, que não podemos deixar de produzir”, afirma o diretor Maurício Zuma.
Os saguis, nos surtos, são os primeiros a morrer e servem de alerta (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA, AFP)
O Brasil goza de posição relativamente confortável. A escassez é um problema mundial. O processo quase artesanal de infectar ovos de galinha com o vírus, somado ao fato de a doença não atingir países ricos e exigir uma única dose para imunização, faz com que a produção não seja um negócio lucrativo. Existem só seis produtores no mundo. Por isso, no ano passado, em uma epidemia urbana na África que começou em Angola e chegou à República Democrática do Congo, houve fracionamento de vacina. Doses de 0,5 mililitro foram divididas em cinco de 0,1 mililitro. Os primeiros estudos sugerem que o fracionamento pode ser eficaz ao conferir imunidade por alguns anos. No Brasil, o Ministério da Saúde, em parceria com a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, estuda aplicar a estratégia. “Estamos pensando no fracionamento já para 2018”, diz Regiane, do Centro de Vigilância Epidemiológica.
O estado de São Paulo estuda fracionar doses da vacina a partir de 2018
A família Giorgi, de Jundiaí, garantiu sua vacina em outubro, em um posto mais tranquilo, da cidade vizinha de Louveira. “Não nos preocupávamos muito com a febre amarela até os jornais noticiarem a morte do senhor de 76 anos em Itatiba”, diz Beatriz. O mesmo medo se abateu sobre boa parte da população da cidade, que lotou os postos de saúde e locais improvisados de vacinação. A cidade vai voltando ao normal – restam um parque fechado e a obrigatoriedade de apresentar carteirinha de vacinação para entrar em clubes de campo frequentados pela elite. Mas os bugios que habitavam as matas no entorno da casa da família Giorgi devem demorar a voltar – estima-se que levará ao menos dez anos para a população se recuperar. Naquele final da tarde de novembro, minutos depois dos assobios de Freddy Giorgi, um sagui curioso apareceu. Os sauás voltaram às árvores vizinhas no último fim de semana. São sobreviventes.
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