O odisseia minúscula de Luciano Huck Ele se compara a Ulisses no texto em que abdica da candidatura à presidência. Mas as sandálias do herói grego ainda são grandes demais para o apresentador
O odisseia minúscula de Luciano Huck
Ele se compara a Ulisses no texto em que abdica da candidatura à presidência. Mas as sandálias do herói grego ainda são grandes demais para o apresentador
Por Jerônimo Teixeira
access_time30 nov 2017, 20h47 - Publicado em 30 nov 2017, 20h35
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Luciano Huck (no Amarelas ao Vivo): um Ulisses doméstico, que carrega a angélica Penélope em sua nau (Antonio Milena/VEJA.com)
Luciano Huck é nosso Ulisses. E não o confunda com qualquer guimarães, não: ele é o Ulisses original, o Odisseu. O apresentador comparou-se ao mais astuto dos heróis gregos no artigo em que anunciou sua não-candidatura (Folha de S. Paulo, 27 de novembro). No geral, o texto é um porre homérico: o renunciante faz aquele manjado jogo de cena em que alega nunca ter ambicionado a cadeira presidencial da qual está desistindo – seu nome só “foi lançado” porque o povo clamava por um homem que como ele, capaz de “sentir na pele o pulso das ruas” (sic). Seguem-se umas tantas generalidades sobre o Brasil (o povo é muito legal – quase tão legal quanto Luciano Huck -, mas muito sofrido) e a política nacional (hoje tomada por “gente desonesta, sem caráter” – e aparentemente também sem nome). Por fim, Luciano Huck nos assegura que poderemos sempre contar com Luciano Huck: ele é o cara que “agrega”. Essa conversa pra boi dormir – aliás, para adormecer todo o rebanho solar de Hélio – não teria chamado minha atenção, se não começasse com o imodesto paralelo mitológico: “Como Ulisses em A Odisseia, nos últimos meses estive amarrado ao mastro, tentando escapar da sedução das sereias, cantando a pulmões plenos e por todos os lados, inclusive dentro de mim”.
“Dentro de mim”? Eu nada sei das sereias interiores de Luciano Huck. As sereias exteriores serão as seduções da política, a vontade dos eleitores, os palácios de Niemeyer, o poder? Não fica claro. Huck, entretanto, identifica os tripulantes de sua intrépida nau – os companheiros de viagem que, ouvidos tapados com cera, impediram-no de seguir o chamado das sereias: “São meus amores incondicionais. Meus pais, minha mulher, meus filhos, meus familiares e os amigos próximos que me querem bem”. Aqui, o símile homérico faz água: na Odisseia, os marinheiros enfeitiçados pelas sereias, segundo adverte Circe, nunca mais retornam à família e a ao lar. Huck faz um Ulisses muito doméstico, que carrega Penélope e Telêmaco em seu barco.
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Há uma ingenuidade quase comovente no modo como o não-candidato usa o episódio homérico para definir seu próprio dilema político-existencial. Ulisses não é o melhor herói para ser aventado por um homem com ambições políticas. Sim, foi essencial para a vitória grega em Troia, mas, antes disso, tentou escapar à guerra. No longo caminho de volta, tema da Odisseia, ele não se revela o mais consciencioso dos líderes – basta observar que Ulisses retorna sozinho a Ítaca… De resto, nenhum herói aqueu ou troiano é exemplar. Todos têm suas falhas trágicas, todos se deixam arrastar implacavelmente pela húbris. Os mitos antigos carregam um entendimento muito particular e muito profundo da natureza humana, mas não estão aí para servirem de modelo para nosso comportamento (tampouco se recomenda que sejam utilizados em canhestras analogias com a circunstância política mais imediata e comezinha).
“O mito é o nada que é tudo”, diz o conhecido verso de Fernando Pessoa. O título do poema: Ulisses.
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Duas curiosidades ligeiras sobre a Odisseia:
Ulisses e as sereias (c. 490 a.C.) (The Trustees of the British Museum British Museum/Divulgação)
1 – A imagem convencional das sereias é aquela que a Disney apresenta na animação inspirada no conto de Andersen: moça bonita, de longos cabelos sedosos e rabão de peixe em vez de pernas. Não há uma descrição física das sereias na Odisseia, mas é certo que elas são monstruosas: vivem em meio aos cadáveres dos miseráveis navegantes enfeitiçados por seu canto: “…sentadas no prado, tendo ao redor monte de putrefatos / ossos de varões e suas peles ressequidas” (tradução de Christian Werner). No vaso ático (c. 490 a.C.) ao lado, vemos Odisseu atado ao mastro e as sereias voando ao seu redor. Sim, voando: não são mulheres-peixe, mas mulheres-aves, parecidas com harpias.
2 – Na Odisseia, constam alguns lugares que são facilmente reconhecíveis no mapa – Creta e o Egito, por exemplo. Mas onde fica a ilha de Circe? E a ilha de Calipso? Em O Mundo de Homero (Companhia das Letras), um excelente guia de leitura, o helenista Pierre Vidal-Naquet recomenda cautela com especulações topográficas: “Assim como não é historiador, Homero também não é geógrafo, mesmo se consideráveis esforços continuam a ser feitos nos nossos dias, a exemplo do que também ocorreu na Antiguidade, no sentido de reconstituir o mundo tal qual ele o imagina”.
Povoado por feiticeiras, sereias, monstros marinhos e ciclopes, o mundo fantástico da Odisseia não tem mapa. Mas tem seus limites: todas suas aventuras e desventuras são mediterrâneas. Camões tinha razão ao mandar que os heróis antigos se calassem (“Cesse tudo o que a Musa antiga canta”) diante dos “mares nunca dantes navegados” que só os lusíadas desbravaram. Ulisses foi até a terra dos mortos, mas não ao Novo Mundo do outro lado do Atlântico. Ao que parece, nunca passou de Gibraltar.
Luciano Huck fala dos “oceanos da jornada de Ulisses”. Debitemos isso na conta da hipérbole.
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