Simon Morrison: “O Bolshoi lucrou com o sistema de servidão russo” O autor do livro “Bolshoi Confidencial” conta como levantou crimes e casos curiosos da companhia de balé, que usou orfanatos como celeiro de talentos



CULTURA
Simon Morrison: “O Bolshoi lucrou com o sistema de servidão russo”
O autor do livro “Bolshoi Confidencial” conta como levantou crimes e casos curiosos da companhia de balé, que usou orfanatos como celeiro de talentos



Luís Antônio Giron23.10.17 - 17h29 - Atualizado em 23.10.17 - 17h37



O livro “Bolshoi Confidencial – Os Segredos do Balé Russo desde o Regime Tsarista até os Dias de Hoje” (Editora Record, 488 páginas, tradução de Cristina Cavalcanti, R$ 44,90), de Simon Morrison, mostra que a reputação daquela que é conhecida como uma das mais puras instituições do mundo é relativa. Morrison também afirma que a lendária “alma russa” não passa de uma lenda rural – baseada na estrutura de servidão do sistema feudal que durou até o fim do século 19. Morrison percorre 250 anos de historia do teatro Bolshoi de Moscou para mostrar que, desde a criação do primeiro teatro de ópera e balé da cidade – na segunda metade do século XVIII, alguns apontam o no de 1768 como o inicial, outros preferem 1776, ano da fundação do Teatro Madddox -, os artistas eram educados nos orfanatos sustentados pelo Estado.

Segundo Morrison, os orfanatos forneceram mão de obra artística servil e lançaram os fundamentos para o rigor e a qualidade do corpo de balé imperial, e a tradição de obediência e trabalho só se fortaleceu com o regime bolchevique e estalinista. Morrison é professor de música da Universidade Princeton e colabora com resenhas de música e ópera para os jornais “The New York Times” e “Times Literary Supplement”. Ele concedeu uma entrevista a ISTOÉ, onde conta detalhes de sua pesquisa e dos aspectos nada puros que revelou ao longo de três anos de trabalho.

Por que você escolheu o Bolshoi como tema para escrever um livro? Foi por causa do escândalo, fato que atrai leitores?

O escândalo de 2013 animou meu agente a sugeria que eu escrevesse um livro sobre o Teatro Bolshoi e seu balé. Mas eu logo me dei conta de que os eventos de 2013 seriam menos prováveis de sustentar o interesse do leitor do que um mergulho profundo na história. Já que sou um historiador especializado em arquivos, minha inclinação natural foi mergulhar no rico passado do Bolshoi, suando os arquivos federais e bibliotecas russas, inclusive, claro, o arquivo do teatro.

Por que o destino do Bolshoi acompanha o da história da Rússia?

O Bolshoi é um símbolo do estado russo e reflete (ou responde à) aspiração nacional e imperial. Seu repertório, que é supervisionado pelo Comitê de Curadores e pelo Ministério da Cultura, é atento para políticas culturais mais amplas. Durante a era soviética, o princípio operacional do teatro era: “Do que nós (a nação, o povo) temos necessidade neste momento?”

O escândalos que têm ocorrido no Bolshoi são parte do processo e do sistema de administração do teatro? São parte da chamada “alma russa”, apaixonada e desorganizada?

A vida artística tem seu lado sombrio em todo lugar. Bailarinos e músicos são, por definição, pessoas obsessivas e tomadas por paixões obsessivas. O Balé Bolshoi não está só em ter enfrentado problemas. De fato, eu imagino que a história do balé em Paris seja ainda mais cheia de casos escandaloso. As intrigas dentro do teatro – os escândalos causados por mau comportamento dos empresários, burocratas maquiavélicos e rivalidade nos bastidores – não são exclusividade de Moscou. Mas o contexto político é diferente, nada usual. A pressão intensa, em diferentes momentos, elevou a qualidade do balé e da ópera do Bolshoi. A grande arte – as obras primas – apareceram no teatro por causa, e não apesar, da pressão.

O “espírito caótico” dos russos pode ser relacionado ao sistema de servidão comum na Rússia desde os primeiros tempos?

Eu creio que as dificuldades vividas pelos artistas do Bolshoi ao longo do tempo reflete um tipo de “sistema de servidão” que você identificou. O Bolshoi lucrou com o sistema de servidão russo. Eu citaria como exceções os artistas de alta reputação, que eram premiados e privilegiados em níveis que as fileiras mais baixas não o eram. O traço distintivo, o caráter tusso da marca Bolshoi, o seu “espírito”, é objeto de um debate aparentemente interminável. O repertório não era especialmente russo até o final do século 19 e o caráter russo dos estilos de performance se baseiam em uma mistura de influências da França e da Itália, além de influências mais locais, da Europa Oriental.

Você afirma que o Bolshoi é o símbolo da luta pela identidade nacional por meio da identidade cultural. Você acha que tal característica continua nos dias de hoje e pode ser comparada ao passado?

O teatro colocou em confronto conservadores e liberais, artistas e plateias comprometidas com a tradição passada, e artistas e plateias que queriam internacionalizar o repertório e privilegiar produções mais experimentais e iconoclásticas. Essa luta reflete, talvez, uma luta mais ampla nos círculos sociais e políticos da Rússia. O tumulto causado no último verão por causa do cancelamento/adiamento da estreia do balé “Nureeyev” é um exemplo óbvio. Eis aí um trabalho novo sobre um bailarino simbólico (Nureyev) que abandonou a Rússia e morreu de Aids. Mostrar sua arte e sua vida no palco histórico do Bolshoi foi interpretado, entre os detratores do vale, como uma provocação aberta.

Por que os teatros se tornaram palcos de cerimônias, manifestações e reuniões políticas? Assim como o Bolshoi, o Scala de Milão abrigou protestos pela Unificação da Itália e mesmo o Teatro de São Pedro do Rio de Janeiro foi o local favorito de jovens românticos progressistas e republicanos.

O teatro manifestou orgulho por servir como palco para coroações de tsares no final do século 19. O governo imperial russo era sediado em São Petersburgo, mas Moscou era (e é) o coração espiritual da nação, o santuário da fé. No século 20, o teatro foi usado para congressos e cerimônias políticas soviéticas, assim como eventos diplomáticos. Ele foi o espaço mais amplo em Moscou nas décadas que se seguiram à Revolução de Outubro. O teatro proporcionou a solução ao problema onde hospedar os encontros do Partido Comunista. Os bolcheviques pensaram em fechar o teatro, mas ele se mostrou útil a eles – e de fato os bolcheviques acharam essencial acolher a arte e a cultura do passado. O ministro d cultura bolchevique, Anatoliy Lunacharsky, alegou que os bolcheviques eram revolucionários na cultura, mas não bárbaros. Assim o repertório dos antigos balé e ópera imperiais se mantivesse, ainda que com acréscimos de balés e óperas sobre temas soviéticos – alguns com sucesso; outros, não.

Os partidos teatrais durante o romantismo são um lugar comum na década de 1840. Como as artistas femininas – divas e dançarinas – simbolizaram a insurgência em tantos lugares ao mesmo tempo? Por exemplo: se em Moscou Sankovskaya serviu como símbolo de insurgência, no Rio de Janeiro, um caso semelhante aconteceu com a dançarina italiana Maria Baderna – a ponto de a gíria “baderna” se tornar sinônimo de “rebelião” no português brasileiro. As “divas” se tornaram divas porque seu talento e habilidade para surpreender as audiências?

A dança é cinética, física, sensual e visceral. Mas também é sobre o espírito, o espírito liberado e livre, o que não é dito e misterioso. O fascínio que as garotas têm com as bailarinas diz respeito ao desejo de serem tão livres de restrições quanto os anjos, as fadas, os duendes. É preciso lembrar que o balé é muito mais conservador do que outras formas de dança. Mas, historicamente, as grandes bailarinas foram vistas como emblemas da libertação dos grilhões, tanto do ponto de vista corporal como social e político.

Conte sobre seu envolvimento com a pesquisa, as dificuldades e descobertas. Como você teve acesso a arquivos russos? Houve problemas com a língua?

Eu tenho trabalhado com os arquivos russos por mais de uma década, e tenho colegas em Moscou que me dão apoio. Eles me ajudaram e me aconselharam durante a pesquisa para escrever o livro. Eu recrutei um assistente de pesquisa, Ilya Magin, para dirigir a pesquisa em São Petersburgo, já que não sou tão experiente com os arquivos lá como estou com os de Moscou, e não poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo. Ilya foi brilhante. Eu me beneficiei mito com sua ajuda. Passei alguns anos em Moscou trabalhando neste projeto.

Em sua opinião, o Bolshoi vai sobreviver a suas dificuldades e continuar relevante?

Claro que vai sobreviver e prosperar! As dificuldades de 2013 foram ultrapassadas. O teatro – o teatro mais importante do mundo, na minha opinião ­- continuará a espantar, encantar e fascinar. O talento do corpo de balé é fenomenal, os solistas são sublimes. Eu escrevi um livro muito curto que percorreu alguns dos altos e baixos da história. O livro poderia ter sido facilmente de 10 mil páginas e não esgotaria o assunto, pois a história do local é muito rica.

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