Os ecos do martelo de Martinho Lutero ressoam há 500 anos

Os ecos do martelo de Martinho Lutero ressoam há 500 anos

CRÔNICA

WOLFGANG TESKE
É jornalista, teólogo e
 professor universitário em Palmas

professorteskeuft@gmail.com
O dia 31 de outubro de 1517, amplamente difundido como o marco inicial da Reforma Protestante, relembra o momento em que o doutor Martinho Lutero, segurando em uma das mãos um martelo e na outra algumas folhas de papel, segue determinado até a porta da igreja do Castelo de Wittenberg, na Alemanha, onde afixou as 95 teses. 

Nestas teses, denunciava claramente o vergonhoso e escandaloso comércio de perdão de pecados, tanto para os vivos como para os mortos, com garantias da saída das almas do purgatório e até perdão total, garantindo o céu, a depender do valor pago pelas indulgências. Lutero escrevera estas teses em latim, para que os intelectuais, professores e alunos que dominavam a língua latina, pudessem refletir sobre a gravidade da situação, que afrontava a essência da verdade bíblica sobre a salvação e justificação unicamente pela graça de Deus, mediante a fé em Jesus Cristo, e que a Igreja retornasse às verdades bíblicas. em seguida, traduzidas para várias línguas, se espalharam pela Europa.

Para compreendermos esta atitude de Lutero, é necessário conhecer o contexto histórico, em seu aspecto religioso, eclesiástico, político e econômico. As indulgências eram uma prática antiga na Igreja Católica Romana, que tinham por objetivo remir as penas temporais dos pecados cometidos, em outras palavras, após a pessoa reconhecer os pecados cometidos e confessá-las perante o monge, teria que pagar de diversas formas. Entretanto, com o passar do tempo, a Igreja viu a possibilidade de se fazer um grande negócio com as indulgências, visando arrecadar fundos para a sua manutenção e para a construção da Basílica de São Pedro. É neste contexto, que os abusos desta prática revoltam o doutor Martinho Lutero, profundo conhecedor das Escrituras Sagradas.

O comércio das indulgências estava diretamente ligado à veneração das chamadas 
           Martinho Lutero pregando as 95 teses na porta da igreja
relíquias sagradas, que eram considerados verdadeiros tesouros, inclusive com certificados de autenticidade, mesmo que falsos. Em Roma se encontrava a maior coleção destas relíquias, que poderiam ser veneradas ou adquiridas, movimentando o comércio religioso. Para citar apenas alguns exemplos: ali se encontrava parte da fogueira de Moisés; a toalha de Verônica que tinha a face de Jesus gravada após ter enxugado o seu rosto; uma das moedas que Judas Iscariotes recebera pela traição de Jesus; pedaços da cruz de Cristo; alguns espinhos, a lança que perfurou o corpo de Jesus na cruz; pedaços de roupas e até terra de sepulturas de alguns santos; até a escadaria de 28 degraus do palácio de Pilatos, na qual Jesus subira para se apresentar para ser julgado e, que, segundo a Igreja, teria sido transportada por anjos pelos ares até lá, e quem subisse nela de joelhos, mediante pagamento, receberia uma indulgência de nove anos. Além destas, havia milhares de outras relíquias.

Mas não era só em Roma que se encontravam este tipo de relíquias, pois em Wittenberg, na Alemanha, Frederico, o Sábio, príncipe eleitor da Saxônia e dono da Universidade que contratou Lutero como professor, tinha um acervo de 17.443 relíquias sagradas, atraindo romeiros de muitos lugares, o que rendia muito dinheiro ao príncipe. Entre estas relíquias se encontrava uma pena da asa do arcanjo São Miguel; o único pedaço da arca de Noé; uma lasca do presépio de Jesus; fios de cabelo e barba de São Cristóvão; entre milhares de outras coisas. Após o príncipe Frederico ter aderido ao luteranismo abandonou estas suas "preciosidades".

Associada a esta prática, surge a venda das cartas de indulgências a partir de uma decisão do papa Júlio II, apelidado por Maquiavel de "o terrível". O papa necessitava de dinheiro, pois comandava pessoalmente exércitos em campanhas militares para conquistar mais territórios, além de ter iniciado a construção da Basílica de São Pedro, em 1506. Após sua morte em 1513, foi sucedido pelo papa Leão X, que decidiu concluir a obra monumental da Basílica. Como necessitava de muito dinheiro par isto, fez um empréstimo na casa bancária mais poderosa da Europa, localizada em Augsburgo, na Alemanha. Para pagar este empréstimo, se elaborou um enorme sistema mercadológico de vendas de indulgências, muito bem organizado: havia um produto ou serviço, havia uma equipe de vendas, tabela de preços para os diversos tipos de pecados, uma política de propaganda e, inclusive, a possibilidade de franquias.

                   Escadaria do palácio de Pilatos, em Roma
O arcebispo da Alemanha, Alberto von Hohenzollern ficou responsável pela negociação bancária e o pagamento, e na medida em que a arrecadação ia acontecendo parte desta teria que ser enviada para Roma, outra para pagamento do empréstimo, e mais uma para o próprio banqueiro que fez o negócio em parceria. O arcebispo Alberto foi designado como comissário-mor que, por sua vez, contratou João Tetzel, como subcomissário. Tetzel tinhja um poder de amedrontar as pessoas com as ameaças da Igreja e ficou conhecido pela frase: - "Antes que o dinheiro tilinte na caixa, a alma sai do purgatório".

Os ecos do martelo de Lutero atingiram o centro do sistema econômico da Igreja. Na 82ª tese, estava escrito: - "Por que o papa não livra de uma só vez todas as almas do purgatório, movido pela santíssima caridade e considerando a mais premente necessidade das mesmas, havendo santa razão para tanto, quando, em troca de vil dinheiro para a construção da Basílica de São Pedro, livra inúmeras delas, logo por motivo tão insignificante"? Na 62ª tese escreveu: - "O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus". Na 52ª tese afirmou: - "Vã é a confiança de salvação conferida pelas cartas de indulgências, mesmo que o comissário ou até mesmo o próprio Papa dessem sua alma como garantia pelas mesmas".

Por causa das 95 teses, Lutero foi classificado como um sujeito problemático e uma ameaça, pois estava acabando com os negócios da Cúria Romana. Em um dos sermões, João Tetzel acusou o monge Lutero de heresiarca, herege, cismático, errôneo, temerário e caluniador. Se isso não bastasse, também o chamou de diabo travestido de monge, cultura vulgar e maligna, desprezível criatura, fradeco e monstro da universidade de Wittenberg. Dizia também: - "É preciso cortar sua cabeça antes que lace mais chamas sobre a cristandade. Basta de mentiras! Basta de lançar os cristãos contra o amado papa". O ódio de Tetzel se revelou ainda com maior intensidade ao queimar as 95 teses e sermões de Lutero e exclamar: - "Assim como queimo os pensamentos de um herege, assim quero ver arder o corpo e a alma do amaldiçoado Martinho Lutero".

Os ecos do martelo de Lutero chegaram à Roma e, por sua vez, foram a causa de sua excomunhão pelo Papa Leão X. Os ecos do martelo também chegaram ao 
                                                95 teses impressas
imperador Carlos V, que o condenou, tornando-o um criminoso, um fora da lei que merecia a morte. Entretanto os ecos do martelo de Lutero também chegaram a muitos que acreditaram na mensagem salvadora revelada pelo reformador, dando sequência aos seus ensinamentos, fazendo surgir o luteranismo e o protestantismo. Os ecos do martelo de Lutero atravessaram cinco séculos e ressoaram novamente em Roma, momento em que o papa Francisco afirma: - "Acredito que as intenções de Lutero não tenham sido erradas, era um reformador, [...] ele protestou, era inteligente e deu um passo adiante justificando por que o fazia. Vemos que a Igreja não era precisamente um modelo a imitar: havia corrupção, mundanismo, apego à riqueza e ao poder".

Os ecos do martelo de Lutero ainda não chegaram a muitas igrejas ditas evangélicas da atualidade, que oprimem os seus fiéis com uma teologia da prosperidade, que é uma nova versão das indulgências do passado. Contudo, os ecos do martelo de Lutero já chegaram a todos os continentes com a mensagem salvadora de Deus que ocorre por graça, mediante a fé, conforme está escrito nas Escrituras Sagradas. Soli Deo Gloria. 

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