Brecha para o trabalho escravo Pacote de medidas arcaicas do governo federal facilita a exploração da mão-de-obra escrava e dificulta a fiscalização e punição desse crime no País
Brecha para o trabalho escravo
Pacote de medidas arcaicas do governo federal facilita a exploração da mão-de-obra escrava e dificulta a fiscalização e punição desse crime no País
EXPLORAÇÃO No Brasil já existe mão-de-obra escrava em muitas carvoarias. Alerta: isso agora pode aumentar (Crédito: Michel Filho)
Por Antonio Carlos Prado e Thais Skodowski20.10.17 - 17h00
No formato de portaria do poder executivo e comandado pelo ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, um navio negreiro ancorou no emaranhado de leis que regulamentam as relações de trabalho no Brasil – emaranhado que é meada sem fio, para se utilizar uma expressão do nosso folclore do século 19, sobretudo no meio rural. Quanto ao navio negreiro em questão, alusão às masmorras flutuantes que traziam para cá os escravos, trata-se da normatização baixada pelo presidente Michel Temer que dificulta a fiscalização e punição de quem atualmente se benefecia do trabalho escravo no País. Não se está afirmando, aqui, que Temer é favorável ao trabalho em condições análogas à escravidão. Mas é fato que o governo acaba de arejar a Casa Grande e, cada vez que se abrem mais janelas a determinados empregadores rurais, mais se cravam troncos próximos às senzalas.
“(…) Infâmia… Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo…
Andrada! Arranca esse pendão dos ares!
Colombo! Fecha a porta de teus mares!”
Antonio Frederico de Castro Alves, em Navio Negreiro,
escrito no século 19 e considerado até hoje nas Américas
o mais forte libelo contra à escravidão
“CHORO EM ORUBÁ, REZO POR JESUS”
Quem sabe imantado pelos duzentos votos da bancada ruralista contra a segunda denúncia da PGR, o presidente alterou, entre outros pontos, um item que era o coração da legislação anterior – e montou assim anteparos à punição. Ninguém deve se surpreender se o governo voltar atrás em sua decisão (já admite rever o texto), tal o tsunami de protestos que ela gerou dentro e fora do Brasil. Tomando emprestada a expressão criada por Chico Buarque na música “Sinhá”, na qual se retrata o regime escravagista, hoje no País há negro, branco, pardo e indígena que choram “em orubá” mas rezam “por Jesus” para que a situação se reverta. Motivo: se há algo que se democratizou para o mal, isso foi o trabalho análogo à escravidão: antes da abolição, eram negros; no século 21 tem-se todas as etnias.
Desde 1995 (sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso), nós, brasileiros, vínhamos crescendo no combate ao trabalho espoliado – organizou-se um conjunto de regras que permitiam fiscalizar e prender os “senhorzinhos” e os “capatazes”. Pode-se dizer, portanto, que a portaria em vigor é o maior retrocesso a que se assiste nessa área desde meados dos anos 1990. E é o maior ato antipatriótico, no campo da democracia social, desde a Lei Áurea (1888). Jornadas exaustivas e condições degradantes, que caracterizavam trabalho escravo, com a portaria recém-editada valem pouco. Só há escravidão, daqui para frente, se o trabalhador também estiver impedido de ir e vir. Ou seja: se ele caminhar cem metros, se desmilinguindo, para dormir num barraco, já não é escravo. O STF, em decisão antiga, analisou essa questão – e, por tal análise, a portaria sucumbirá. “Há jurisprudência de que a jornada exaustiva define escravidão”, disse o ministro Gilmar Mendes.O novo pacote de medidas dificulta a fiscalização pelos órgãos federais
REPÚBLICA MALABARIS
Mantenha-se atento, leitor, porque aqui há um pulo do gato: a portaria tenta se disfarçar em altamente rígida, tratando a escravidão como era antes da abolição, mas, na verdade, ela se torna mesmo é permissiva, porque no correr dos séculos tudo pode “evoluir para pior”, conforme ensina o filósofo vitoriano Herbert Spencer. Assim, se antes o chicote estalava, hoje há quem passe trabalhador na motosserra. “A escravidão moderna se dá por outros castigos”, diz Antonio Rosa, representante no Brasil da OIT. “A portaria é restritiva ao condicionar a escravidão ao cerceamento do direito de ir e vir”. Existe, porém, outro importante ponto: a “lista suja”. Anteriormente, a equipe técnica do Ministério do Trabalho era competente para nela incluir os senhores de engenho desses tempos modernos, e eles ficavam impedidos de pegar dinheiro em bancos públicos. Pela nova norma, o único coroado que pode colocar nomes na lista é o ministro do trabalho em pessoa. É o auge do absolutismo convivendo com a República.
Essa convivência de contrários, às vezes em equilíbrio, às vezes feito leite entornado, é traço de nossa abolição da escravatura e de nossa República, delineado pelo sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre. Mas não é mérito nem contemporaneidade do mundo termos tal República malabaris. O equilíbrio, ciclicamente, vira vento a anunciar que um furacão varrerá o chão. É isso que se dá com o desdobrar do modelo econômico brasileiro, calcado no liberalismo nos grandes centros urbanos coexistindo com uma estrutura arcaica em diversas regiões rurais, sobretudo no nordeste, norte e centro-oeste. É nelas, é nesse arcaísmo, que vivem os “carcarás e os bezerros”. Fenômeno similar se deu no getulismo com a criação da CLT, um avanço à época (hoje anacronismo) protegendo o trabalhador urbano numa emergente sociedade industrial mas pouco olhando para o habitante dos sertões – o sertanejo forte e escravizado numa República torta, no Brasil Hércules-Quasímodo, como definiu, tais contradições, o escritor Euclides da Cunha. E antes do 15 de novembro de 1889, e antes do 13 de maio de 1888, as sementes dessas relações antagônicas e falsamente equilibradas já se plantavam no caminho entre a casa grande e a senzala – na relação “amorosa” forçada pela submissão do açoite, relação de uma noite, relação de humilhação, relação de rebento após nove meses, relação de banzo, relação socialmente desnivelada entre a escrava adolescente e o filho do senhor. Todos esses fatores nos fizeram assim, e é esse “assim” que nos faz retroceder no campo social com portarias como a que acaba der posta em prática. “É um grande retrocesso”, diz a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que recomendou ao governo a anulação da resolução.
Auditores do Ministério do Trabalho fizeram greve em todo o País, o seu segundo escalão alertou para a inconstitucionalidade, o Ministério Público do Trabalho foi ao STF, a secretária nacional de Direitos Humanos, Flávia Piovesan, bateu forte: “é uma afronta à legislação brasileira”. Somente os ruralistas sorriram. Vale, porém, lembrar que, ironicamente, as regras recentes serviram para elucidar a exoneração do chefe da divisão de combate ao trabalho escravo, André Roston. O governo cortara-lhe verbas, mas ele apertou o cinto e seguiu em sua rotina de fiscalização. Do dia para a noite, foi então demitido. Agora fica claro que Roston caiu porque insistiu em fiscalizar o que já não era para ser olhado. “É uma portaria desastrada”, declarou o ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Com tantos protestos, é bem provável que Temer recue. É o certo. E mais certo ainda, já que no Brasil há trabalho escravo, seria editar outra portaria, facilitando a punição dos atuais escravocratas.
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