SEGURANÇA DO BRASIL ACABOU TÁ NA HORA DE REPENSAR AS PMS E UNIFICA-LAS

Rocinha: a vida debaixo de bala

Sem esperança, os moradores da Rocinha se preocupam com qual facção criminosa vai mandar no morro após a saída das Forças Armadas. Achar uma solução para o problema é desafio prioritário para o Rio de Janeiro e para o Brasil

HUDSON CORRÊA (TEXTO) E ANA CAROLINA FERNANDES (FOTOS)
29/09/2017 - 21h46 - Atualizado 29/09/2017 22h13
Garoto brinca em frente a parede crivada de balas na Rocinha (Foto:  Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA)
"Acho que tem alguém mexendo na porta.” Grávida de cinco meses, Tatiane Paula cutucou o marido, Luiz Cláudio, a seu lado na cama. “Você está sonhando”, resmungou ele, que teria um dia longo na metalúrgica onde trabalha. Eram 5h55 da terça-feira, dia 19. No domingo anterior, perto daquele mesmo horário, a favela da Rocinha acordou com o barulho de mais de 50 traficantes disparando fuzis para todos os lados. As balas de calibres usados em guerras faziam de peneira uma porção de muros, paredes, portas, janelas e latarias de carros e motos, algumas delas pegavam fogo. Transformadores da rede elétrica explodiam. Foi assim nas intermináveis quatro horas de tiroteio. Tatiane, de 35 anos, nunca vira nada igual na comunidade onde vive desde que nasceu. Talvez apenas sonhasse mesmo àquela hora da manhã, mas agora Luiz Cláudio também ouvia o ranger da maçaneta. Pulou da cama para checar o que era. Mal abriu a porta e já estava com um fuzil apontado para a cabeça.
Casa pichada com referência a Rogério 157 e á  ADA,facção que domina o  orro (Foto:  Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA)
O homem de fuzil se identificou como policial militar, ao menos outros três estavam com ele. Pareciam ser do Bope, a tropa de elite da PM. Provavelmente, os quatro abriram o portão com uma chave mestra. Não foram violentos, mas exigiram saber quem morava ali e no que trabalhavam. Desde que a guerra começou, Tatiane recebe visitas diárias de policiais, quando não os surpreende em cima de sua laje sem pedir licença. O sobrado desperta a atenção da polícia porque fica numa das partes mais altas da favela, o que dá uma visão estratégica do território. Também está próximo ao Q.G. do tráfico de drogas na Rua Dois, onde ocorreu o tiroteio que transtornou a Rocinha durante as duas semanas passadas. A casa tem ar-­condicionado, geladeira moderna, TV de 42 polegadas e porta de vidro que dá para uma sacada, de onde se avistam um pedaço do mar, as montanhas em volta e bairros da Zona Sul. “A polícia acha que você é bandido, se tem uma casa bonitinha. Comprei essa aqui em 2015 só no tijolo e a família ajuda na reforma”, diz Tatiane, diretora da associação de moradores da Rocinha. 
Havia novamente uma violenta disputa pelo controle do tráfico de drogas numa das maiores favelas do Brasil, na Zona Sul do Rio de Janeiro. É um ponto cobiçado. A região mais rica da cidade oferece endinheirados consumidores de maconha e cocaína, o que torna as bocas de fumo da Rocinha muito rentáveis. Investigadores dizem que cada ponto de venda pode arrecadar R$ 90 mil por semana, e são incontáveis os pontos. Dois grupos dentro da facção que domina a área, a Amigos dos Amigos, conhecida por ADA, entraram em confronto por esse negócio. Os mais de 50 bandidos que invadiram a favela vieram de uma comunidade situada no centro da cidade, 13 quilômetros distante. Instalados na Rocinha desde 2012, os policiais da Unidade de Polícia Pacificadora, a UPP, se esconderam ao ver o poderio bélico dos invasores.
Tatiane e a filha na sacada de casa (Foto:  Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA)
Os traficantes escorraçados pelos invasores se embrenharam na mata no topo do morro. Inúmeras trilhas pela Floresta da Tijuca dão acesso aos bairros vizinhos. Diante da falência da segurança pública no Rio de Janeiro, até a sexta-­feira, dia 29, a Rocinha esteve ocupada por 950 homens das Forças Armadas, com blindados, jipes e fuzis para ajudar a polícia. O tráfico que faz suas guerras parou a vida dos cerca de 70 mil moradores da Rocinha. Nem a presença de militares inspirou confiança. Tatiane proibiu o filho de ir à escola. O garoto de 15 anos estuda à noite no Leblon, distante da favela, mas ela teme que na volta do colégio a polícia confunda o menino com algum traficante. O rapaz que já ganhou corpo de homem passa pela temida Rua Dois. Nesta semana, ele perdeu provas e matérias importantes. A filha de 6 anos está entediada em casa. Ela estuda numa das tantas escolas que fecharam as portas na Rocinha até que um mínimo de paz volte. Na quarta-feira, dia 27, Tatiane esperou mais de três horas para fazer o exame pré-natal do terceiro filho. Não havia outra opção, pois a maioria dos postos de saúde não funcionava regularmente. Tatiane manteve uma rotina de aprisionada pelo medo. Evitou sair à rua por temer uma invasão da polícia se ninguém estiver em casa. Os vizinhos comentam que suas portas foram arrombadas e seus móveis quebrados por policiais em busca de bandidos. Tatiane não teve paz para organizar o chá de bebê para o filho, que daqui a quatro meses será o mais novo morador da Rocinha.
Ao meio-dia da quarta-feira, dia 27, Tatiane enfrentava a fila do exame pré-­natal em um posto de saúde na Rua Um, na parte alta da favela, quando militares da Marinha chegaram de repente – e às dezenas – à entrada da Rua Dois. Vieram pela Estrada da Gávea, a principal e sinuosa via que corta a favela de um lado a outro do morro. Saltaram rapidamente de jipes e caminhões. Dois assumiram os fuzis apontados para o interior da favela no alto do blindado estacionado. Moviam-­se como se estivessem prestes a atacar. Um fuzileiro apontou o dedo para o alto do morro, outro levou o binóculo aos olhos e alguns ficaram em posição de tiro. Assustados, escaldados por tiroteios, moradores que seguiam pela rua pararam para saber se continuavam ou buscavam abrigo. Em alguns segundos, a Estrada da Gávea ficou engarrafada pelos veículos das Forças Armadas, vans, motos que transportam passageiros, caminhões pequenos e carros.    
Garotos cumprimentam o prefeito Marcelo Crivella (Foto:  Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA)
De repente, uma fumaça esbranquiçada se desmanchou no ar no alto do morro. Algum traficante pode ter soltado fogos para avisar sobre a movimentação dos inimigos. Militares da Marinha avançaram para dentro da Rua Dois. Miraram os fuzis para os becos, cujas escadarias estreitas e ramificadas dão  acesso às casas no alto, entre elas a de Tatiane. Ali há lojas de todo tipo, padarias e bares. Um dos fuzileiros com outro na retaguarda apontava com insistência o fuzil para o alto. Os dois estavam de pé atrás da cadeira onde um homem que tomava cerveja no bar contava alguma história ao amigo e fazia pouco caso dos militares colados a suas costas. O povo da Rua Dois, dentro da favela, pareceu menos assustado que a turma da Estrada da Gávea, na parte externa. Talvez estejam mais acostumados à violência. O homem que conserta máquinas de lavar não estranha nada. Comentou que o carro mais à frente foi destruído por balas no confronto. Outro morador, sentado no chão de costas para a rua, retirava os fios de cobre de peças velhas de metal para vender à reciclagem. “É meu jeito de pôr comida na mesa”, diz. Ninguém se identificava nem estendia a conversa. Os olheiros do tráfico estavam por ali. Mesmo desarmados, incógnitos por causa da presença ostensiva dos militares, são perigosos porque podem delatar aos chefes qualquer um que fale “demais” com estranhos. Um dia antes, um helicóptero militar lançou sobre a favela milhares de panfletos com o número do telefone para fazer denúncias contra o tráfico. Um jipe das Forças Armadas com alto-­falante percorreu as ruas pedindo a colaboração.
Confrontos anteriores na Rocinha foram motivados por tentativas da facção concorrente, o Comando Vermelho, de tomar a área da ADA. Desta vez foi uma ruptura interna. Rogério Avelino da Silva, o Rogério 157, pivô do conflito na Rocinha, é um integrante da ADA e até então preposto de Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, traficante que controla o morro a partir do presídio federal de Porto Velho, em Rondônia, a 3.500 quilômetros do Rio de Janeiro, onde está preso desde 2011. Devido a um desentendimento, Nem mandou os tais de 50 homens com fuzis para retomar o território usurpado. Rogério escapou vivo. Os investigadores da polícia suspeitam que, num primeiro momento, Rogério se escondeu na Floresta da Tijuca, no topo do morro, e depois procurou abrigo em favelas sob o domínio do Comando Vermelho (CV), principal inimigo da ADA. Rogério é o bandido mais procurado do Rio de Janeiro. Há uma recompensa de R$ 50 mil por informações que levem a ele. 
Soldados patrulham o morro (Foto:  Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA)
Na barreira do blindado e jipes da Marinha na entrada da Rua Dois, uma mulher se aproximou da reportagem de ÉPOCA e entregou discretamente uma carta “às autoridades”. É quase um pedido de socorro. A mensagem de frente e verso diz que a comunidade ainda está sob o domínio dos criminosos. “A polícia não foi atrás dos bandidos que juntam dinheiro para o tráfico com a venda de gás de cozinha na comunidade”, diz o texto de boa caligrafia. “É um absurdo pagar quase R$ 100 pelo botijão mesmo com a favela nas mãos das Forças Armadas.” O empresário Gonçalo Waldemar Evangelista, o Waldemar do Gás, detém há anos o monopólio de venda de botijões dentro da Rocinha. Ele impõe o preço. Em bairros vizinhos da Zona Sul, o valor não passa de R$ 80. Até aqui, porém, não há nenhuma acusação de que Waldemar seja ligado ao tráfico de drogas. Nos dias da ocupação do morro pelas Forças Armadas, Waldemar estava sumido. A polícia investiga se o motivo da briga com Nem foi justamente o fato de Rogério 157 explorar a venda de gás na Rocinha, prática típica das milícias. Formadas por policiais, bombeiros e agentes penitenciários corruptos, as milícias são inimigas do tráfico no mundo da bandidagem. Dominam favelas e operam no mercado de extorsão, com a cobrança de taxas de proteção da população e de comerciantes, exigem parte dos rendimentos com a venda de produtos, como gás de cozinha e água mineral, além dos serviços de TV a cabo, internet e transporte ilegal por vans.
Depois de algum tempo, os fuzileiros navais recuaram de volta à Estrada da Gávea. Alguns soldados causaram desconforto porque, além das tradicionais balaclavas que usam por baixo dos capacetes e deixam só os olhos de fora, cobriram o rosto com máscaras de caveira. Essa proteção de mau gosto contra a espionagem dos soldados do tráfico, que passam de moto filmando a tropa com o celular, será investigada pelo Comando Militar do Leste. As máscaras talvez sejam o motivo de algumas crianças rejeitarem os pacotes de doces oferecidos por militares femininas no dia de Cosme e Damião. Moradores da Rocinha estão apreensivos não com o que será da vida após a saída das Forças Armadas, mas com quem vai mandar no morro daqui em diante. Para quem vive na Rocinha não há dúvida que quem governa é o tráfico, não a prefeitura, o governo do estado ou o federal. São os traficantes que estão à porta todos os dias. Assim, a possibilidade de o Comando Vermelho acolher Rogério 157 para afrontar a ADA causa arrepios. A mulher que entregou a carta a ÉPOCA diz que a ADA tem regras mais brandas; o Comando Vermelho assusta porque, além do gás, pode dominar todo o tipo de comércio e também o transporte por vans. É mais violento. Neste momento, ninguém sabe quem no poder paralelo do tráfico “administra a Rocinha”, dizem moradores.
Comerciante atua na Rocinha  (Foto:  Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA)
Na tarde da quarta-feira, dia 27, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, fez uma visita à Rocinha. Entrou pelo Valão, uma parte onde o esgoto corre a céu aberto no meio de lojas, pontos de venda de gás, bancas de frutas e de peixe fresco. Em seguida começou a subir a Rua Dois em direção à parte alta, palco da guerra entre os bandidos. Parou no Lajão, onde o esgoto desce por um canal de concreto, numa cachoeira de lixo. Daquele ponto, Crivella tentou subir uma escadaria. “Vamos sair na Estrada da Gávea por ali”, disse ele, referindo-se à rua principal. Ex-taxista, Crivella conhece bem a cidade e confia em seus caminhos. Os guias da comitiva tentavam não demonstrar pânico. “Não, não. É por aqui, prefeito. Aí não tem saída. Fecharam lá”, disseram os guias. Crivella insistiu. Algum assessor engrossou a voz e perguntou quem fechou, como se sua autoridade fizesse alguma diferença ali. Crivella se deteve contrariado por alguns segundos, mas atendeu aos apelos de ir pelo outro caminho, uma longa escadaria estreita onde mal cabe uma pessoa. Se o prefeito tivesse seguido em frente, daria de cara com traficantes no beco. Eles haviam aceitado ficar quietos, sem incomodar a visita da autoridade.
Os blindados da Marinha, a minuciosa revista de pessoas feita pelos militares e as incursões do Bope não afugentaram os traficantes. A venda de drogas continuava nos becos da Rocinha semana passada, mesmo na parte baixa totalmente cercada pelo Exército. O cheiro de maconha era onipresente. Os bandidos apenas deixaram de lado os fuzis, as metralhadoras e granadas que ostentam em situações normais. Foram mais discretos. Crivella prometeu um “banho de loja” na Rocinha, com obras de saneamento, mas no dia seguinte a intervenção mais fácil era a pintura da quadra esportiva na parte de baixo.
Soldado usa máscara de caveira na Rocinha (Foto:  Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA)
Os moradores, que não podem esperar, reconstroem o que foi destruído pelas balas dos fuzis dos bandidos. Tapam com cimento os buracos de bala nos muros e nas paredes das casas. Fazem reparos elétricos. Nove dias após o tiroteio, algumas pessoas ainda estavam sem luz em casa. Pontos da Estrada da Gávea continuavam repletos de sacos de lixo amontoados, mas a miséria maior está oculta no emaranhado de becos no interior da favela. São labirintos de corredores entre as casas onde moradores não veem a luz do sol. A rede de energia é uma macarronada de fios no alto. Ratazanas fuçam a lama distraí­das durante o dia. Em toda parte, as pichações lembram a facção ADA, o traficante Nem e o nome de Rogério 157, agora banido da facção.
Quando se espera que um beco não tenha saída, surge de repente um espaço mais largo com algum bar, padaria ou até salão de beleza. Dono de um bar, Josiel Vieira de Souza trabalha ali há 30 anos sem perspectiva. Recebia muitos turistas, mas a crise apertou e ele não descarta voltar para o Ceará. A guerra fez cair de vez o movimento. “Ninguém mais sai às ruas”, diz. “Aqui parece a Faixa de Gaza, o Irã e o Iraque”, diz uma cliente do bar que não se identifica. Ela tem barraca na praia, mas não tem conseguido trabalhar. As sequelas do acidente vascular cerebral que sofreu se agravaram por falta de remédio, já que os postos de saúde estavam fechados. Sempre movimentada 24 horas, com festas, feiras e bares lotados, a Rocinha é um deserto à noite. Somente na quinta-feira, dia 28, algumas linhas de ônibus voltaram a circular no interior da comunidade. Pelo menos as crianças ainda preservam o espírito para brincadeiras. Algumas circulavam divertidas entre os blindados da Marinha. Outras ironizavam os buracos de bala nas paredes imitando uma arma, com o dedo indicador apontado para a frente e o polegar para o alto. Elas se apressavam em dizer, como se precisassem justificar: “A gente pratica esporte. A gente não tem ligação com o movimento, não”. Na linguagem da comunidade, “movimento” é o tráfico de drogas.

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