Por que em museu só entra mulher nua?
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Por que em museu só entra mulher nua?
Esta é a pergunta que norteia a exposição das Guerrilla Girls no Museu de Arte de São Paulo
NINA FINCO
29/09/2017 - 20h23 - Atualizado 29/09/2017 20h57
De costas, elas parecem um trio de mulheres com um mesmo corte de cabelo peculiar: curto, com pontas espalhafatosas voltadas para todos os lados. Quando elas se viram, não há rostos para identificar, mas, sim, máscaras de gorila que pendem com as bocas abertas, repletas de dentes pontudos. Há 32 anos, as integrantes do grupo ativista americano Guerrilla Girls protegem suas identidades por trás das feições de símios. Militantes feministas, elas usam as máscaras de gorila para protestar de forma bem-humorada e ousada contra a desigualdade de gênero e de raça no mundo da arte – em inglês, a pronúncia das palavras guerrilha e gorila é semelhante. O questionamento central das ativistas é por que há tão poucas artistas mulheres com obras em exposição nos museus e galerias de arte, se há tantas modelos nuas nas peças exibidas?
A principal forma de expressão das Guerrilla Girls são cartazes que elas colam pelas ruas de Nova York com dizeres e ilustrações que apontam discrepâncias como a diminuta quantidade de exposições solo de artistas mulheres nos museus e galerias e o irrisório número de vencedores negros nas premiações do Oscar. Desde a semana passada, os cartazes das ativistas passaram a tomar as paredes do museu mais importante da América do Sul. A exposição Guerilla Girls: gráfica, 1985-2017 foi aberta no Museu de Arte de São Paulo (Masp) na sexta-feira, dia 29, e ficará em cartaz até 14 de fevereiro de 2018, com 116 pôsteres produzidos nas últimas três décadas. Como os originais são em inglês, a curadoria (assinada por Adriano Pedrosa, diretor artístico do museu, e Camila Bechelany, curadora assistente) disponibilizou uma miniversão traduzida ao lado de cada peça.
Dois cartazes, em tamanhos maiores, foram feitos especialmente para a mostra brasileira. Um deles é a versão traduzida de As vantagens de ser uma artista mulher – uma lista irônica dos benefícios de não ser levada a sério no mundo da arte, como não passar pelo constrangimento de ser chamada de “gênio”. O outro é uma versão do cartaz mais famoso das GGs (como o grupo foi apelidado pela imprensa americana): a figura de uma mulher nua, com uma cabeça de gorila, num fundo amarelo, com inscrições que quantificam o número de nus femininos (85%) no Metropolitan Museum of Art, em Nova York, em contraposição ao número de mulheres com obras em exposição no museu (menos de 5%) – os dados são de 1989. Na versão brasileira, elas usaram números baseados no acervo do Masp (60% e 6%, respectivamente, em 2017). “Sempre que fazemos algum tipo de trabalho com um museu, gostamos de fazer uma provocação contra ele. Mas, desta vez, foram eles mesmos que nos passaram os números”, afirmou Frida Kahlo, uma das três Guerrilla Girls que vieram ao Brasil para a abertura da exposição – elas adotam como pseudônimos os nomes de artistas mulheres e nenhuma revela seu nome verdadeiro. Com Frida Kahlo, vieram Käthe Kollwitz, em referência à gravurista expressionista alemã, e Shigeko Kubota, em homenagem à escultora e performista avant-garde japonesa.
O discurso que emerge dos cartazes das GGs não é uma criação delas. Em 1971, a historiadora de arte Linda Nochlin publicou um ensaio intitulado Why have there been no great female artists? (Por que não houve grandes artistas femininas?, na tradução do inglês). Escrito durante uma das mais significativas ondas do movimento feminista, o ensaio marcou o início de uma era em que as instituições públicas de arte passaram a ser desafiadas em relação à representação das mulheres em suas coleções. Embora tenham sido registrados avanços desde então, ainda existem sérios desequilíbrios. Estatísticas de 2012 revelam que as obras de mulheres femininas representavam apenas de 3% a 5% das principais coleções permanentes nos Estados Unidos e na Europa; nenhuma obra de artistas femininas alcançou os preços mais altos em 100 leilões de peças de arte daquele ano; na lista feita pelo jornal especializado Art News, das 30 exposições mais visitadas em Nova York, Paris e Londres, apenas três eram individuais com artistas femininas.
A desigualdade na representação de gêneros está presente também nos cursos de história da arte. No Brasil, o artista visual e pesquisador Bruno Moreschi, quando começou, há três anos, a ministrar a disciplina na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), percebeu que a bibliografia prevista para o curso não abordava as produções realizadas por mulheres (negras ou não), negros e artistas nascidos na América Latina. Ele criou então um grupo para analisar as representações artísticas incluídas como conteúdo do curso. Das 5.516 imagens analisadas, 1.060 contêm pelo menos uma figura de mulher – dessas, 44,3% são de mulheres nuas ou seminuas. Os homens aparecem em 765 imagens, das quais apenas 18,9% contêm nus ou seminus (quase metade são imagens de Jesus). O resultado dessa pesquisa, transformado em um panfleto dobrável repleto de mapas e gráficos, está disponível na mostraRumos Itaú Cultural, em São Paulo, sob o título de História da _rte, em cartaz até 5 de novembro.
“Isso continua acontecendo porque os valores patriarcais ainda dominam a cultura ocidental. A ideia sobre qual arte é considerada boa está ligada a tendências machistas que são profundamente enraizadas em nossas sociedades. Leva décadas, senão séculos, para mudar isso”, afirmou a ÉPOCA a historiadora Amelia Jones, professora da Universidade da Califórnia, crítica de arte e curadora especializada em arte feminista. “A maioria dos críticos de arte se considera liberal quanto aos papéis sexuais e à equidade de gênero. Mas os preconceitos, sutis, continuam lá enterrados.” Devido ao fato de que grande parte dos curadores – e do público – de museus e galerias são homens, é comum que eles não percebam a falta da representação artística de outros grupos.
Segundo Amelia, está cada vez mais difícil, porém, para essa misoginia no mundo da arte, ainda que velada, passar batido nos dias de hoje. Aos poucos, o perfil do público produtor e consumidor de arte vem se tornando mais diverso. Em 2006, as mulheres já representavam mais de 60% dos estudantes dos cursos de arte nos Estados Unidos – essa presença feminina maciça abriu enormemente o espaço para a discussão sobre sexismo na representação artística. O ressurgimento do movimento feminista na era digital deu também novo impulso ao debate que passou a atingir segmentos da sociedade antes totalmente alheios ao tema. As próprias GGs transferiram grande parte de sua atuação dos muros da cidade para os murais das redes sociais.
“Ao longo dos anos, descobrimos que você não pode enfrentar o problema todo de uma vez. Você precisa focar naquilo que é possível fazer”, afirma a artista que usa o pseudônimo de Käthe Kollwitz, por trás de sua máscara de gorila. “Faça algo. Se não funcionar, faça outra coisa. O mais importante é: continue fazendo, mesmo que não pareça fazer diferença da primeira vez. Essa é a nossa filosofia e foi assim que chegamos aqui”, diz ela, apontando para as paredes vermelhas do Masp projetadas em 1968 por Lina Bo Bardi, a arquiteta de origem italiana que, a seu modo e a seu tempo, também foi uma espécie de Guerrilla Girl a desbravar fronteiras no mundo ainda essencialmente
masculino da arquitetura.
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