"Impeachment teve aparência de legalidade, mas substância é grotesca"

"Impeachment teve aparência de legalidade, mas substância é grotesca"

Historiador vê derrubada de Dilma como alteração da estabilidade democrática e critica a estratégia do campo progressista
por Ingrid Matuoka — publicado 09/09/2016 12h48
José Cruz / Agência Brasil
Dilma e Temer
Dilma e Temer durante a cerimônia de posse do segundo mandato
Em um artigo publicado em 2009, antes das eleições que fizeram de Dilma Rousseff a sucessora de Luiz Inácio Lula da Silva, o historiador Luiz Felipe de Alencastro afirmou que a petista poderia tornar-se refém de Michel Temer, seu vice. "A aliança PT-PMDB pode se tornar desastrosa num governo Dilma em que Michel Temer venha a ocupar o cargo de vice-presidente", escreveu o hoje professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Alencastro via um descompasso entre Dilma, que nunca tinha concorrido a cargo algum, e Temer, que "maneja todas as alavancas do Congresso e da máquina partidária peemedebista". 
Sete anos depois, o impeachment da petista confirma as análises e observações de Alencastro. Para o historiador, a falta de habilidade de Dilma está na raiz da crise política brasileira, mas o sistema político-eleitoral também. Nesta entrevista, ele defende reformas nesse sistema e alerta contra os riscos da convocação de novas eleições presidenciais. 
CartaCapital: No artigo de 2009 publicado na Folha, o senhor afirmou que "a aliança PT-PMDB pode se tornar desastrosa num governo Dilma em que Michel Temer venha a ocupar o cargo de vice-presidente". À época, o que levou a essa conclusão?
LFA: O presidencialismo brasileiro é franco-americano, porque tem a figura do vice no modelo dos Estados Unidos e os dois turnos típicos da França, mas nenhum outro país no mundo combina as duas coisas, o que resulta em um vice com dois turnos. Eu uso a metáfora de que o vice, no Brasil, é a bananeira que já deu cacho no primeiro turno.
Além dessa combinação peculiar, unir Michel Temer a Dilma Rousseff era pedir para dar errado, na minha visão e na de várias outras pessoas com quem conversei.
Dilma nunca tinha disputado nenhuma eleição, e o que é pior, nunca tinha perdido nenhuma eleição. Um político cresce quando perde, se reconstrói, e é obrigado a examinar os erros.
E antes mesmo de ser escolhido como vice, Temer já dava palpites, o que é de uma extrema indelicadeza, para dizer o mínimo. Isso mostrava como era diferente dos vices anteriores. Marco Maciel, de Fernando Henrique, entrou mudo e saiu calado. José Alencar foi discreto e tinha uma fidelidade absoluta a Lula. Não é o caso de Temer.
CC: O impeachment de Dilma, sete anos depois, confirma essa visão?
LFA: Ninguém acha graça em ver se realizar uma previsão indesejada. Mas a coisa se degradou muito rapidamente. A inapetência política de Dilma é um dos grandes fatores responsáveis por essa crise, além da corrupção que houve em certas esferas do PT e o descolamento da cúpula do partido com o eleitorado.
No início do segundo mandato, ela sumiu do cenário político. Entre outubro e janeiro não há um ato ou encontro político relevante. Ela tinha acabado de ser reeleita com a menor diferença de voto da história e havia muita expectativa.
Fazia parte de sua função governar com o Congresso que foi eleito, ainda que haja puxadores de votos, mas a política é assim. Ninguém disse que ela teria o Congresso a seus pés, mas ela não podia deixar de receber políticos e perder o contato com a realidade do país e do contexto internacional.
Essa perda de noção decorre muito do isolamento do poder em Brasília, tanto geográfico, quanto da falta de opinião pública local, e isso acontece no Palácio do Planalto e com os parlamentares que acham que a vida é o que está ocorrendo no Congresso.
Temer é exemplo disso quando afirma que são só quarenta pedindo sua saída. Ele também é um analfabeto político, mas de outra espécie: muito hábil como parlamentar, mas incapaz de sentir o pulso do país. É um orador obsoleto com a retórica de centro estudantil de 1950 e um péssimo político no sentido de apelo ao voto.
CC: A deposição de Dilma indica uma fragilidade na eleição conjunta para presidente e vice?
LFA: É um problema, sem dúvidas, mas o que fechou a catástrofe foi a caducidade da Lei do Impeachment. Ela tem 66 anos, e depois do impeachment de Fernando Collor ficou claro que ela é problemática.
Com setenta artigos podem-se criar pretextos de todos os tipos para derrubar um presidente. E tem coisas inteiramente anacrônicas nela, falando de perigo da pátria e de incentivar o ódio contra as Forças Armadas. Eles podiam ter montado o impeachment a pretexto de que a Comissão da Verdade estava incitando ódio contra as Forças Armadas, por exemplo.
Durante esse tempo todo nenhum ministro da Justiça se preocupou em discuti-la, o que mostra que toda assessoria parlamentar jurídica dos presidentes do Executivo é extremamente imprudente e sem noção da necessidade, também para a democracia, de ter regras constitucionais claras, ou ao menos uma jurisprudência, para não descarregar tudo na mão do Supremo. O Legislativo omitiu-se também nesse caso. Assim, o Supremo teve de improvisar com o que tinha na mão e revalidou essa lei de 1950. Ela era uma bomba-relógio.
Manifestação
Parte da população pede novas eleições. Alencastro discorda (Foto: Roberto Parizotti/ CUT)
CC: A figura do vice-presidente ainda deveria existir?
LFA: É uma boa questão, porque na França não tem. Morre o presidente da República ou ocorre um impeachment, o presidente do Senado assume provisoriamente e convoca nova eleição. Não é difícil fazer uma eleição no Brasil de hoje. Antes, levava seis meses, agora se pode fazer em até três. É o caso de se perguntar a necessidade de um posto de vice-presidente, até porque só vale para os dois primeiros anos do mandato, senão há eleição indireta no Congresso.
CC: Do ponto de vista histórico, a crise atual é comparável a alguma outra do passado recente brasileiro?
LFA: Não, porque é uma crise derrapante, não é uma crise de ruptura. Pode ser que pare, pode ser que se aprofunde. Há essa interrogação porque o impeachment teve aparência de legalidade, de solução, mas a substância é grotesca. O Senado, ao condenar e não dar a pena correspondente ao crime, evidencia o golpe parlamentar. Acho que agora é possível dizer isso inclusive juridicamente.
Mas não é uma ameaça de golpe de Estado como em 1954, não é um golpe de Estado perpetrado pela metade como em 1961, e não é um golpe total como foi em 1964.
Não é um ato de força militar, é um ato de força parlamentar, e não se pode admitir que um Congresso seja parlamentarista.
Trata-se de uma alteração da estabilidade democrática grave, e precisamos acompanhar para que não haja desdobramentos, como ameaças a garantias individuais e coletivas.
CC: Muitos analistas pontificam o fim do que ganhou o nome de “presidencialismo de coalizão”. O senhor concorda com esse diagnóstico?
LFA: Chegou ao fundo do poço, mas não se esgotou, e não dá para esperar que venha qualquer coisa nova. O processo de dois turnos deveria ter corrigido um pouco isso, mas não foi o caso, porque o sistema eleitoral de lista aberta, sobretudo na Câmara, é altamente desestabilizador. Cria casos como o de agora, em que uma vereadora [Alyne Zolin, de São Paulo] assumiu com um voto, e que nem foi o dela própria.
CC: Na sua visão, quais as reformas mais urgentes no sistema político-partidário?
LFA: Tem que instituir a cláusula de barreira dos pequenos partidos, que o Supremo derrubou. Aliás, o Supremo vive deitando regras sobre o que deveria ou não ser feito, mesmo depois da aprovação no Congresso. 
Em seguida, a quantidade de partidos precisa ser revista. Os Estados Unidos e a Espanha têm muitos partidos, mas eles são regionais, não há necessidade de que sejam nacionais. Pode haver um partido no Sul que tenha impacto nas eleições locais e que faça alianças, e isso não ameaça a Federação.
CC: Em abril, em uma entrevista (para a GloboNews), o senhor classificou a proposta de novas eleições (a não ser por decisão do TSE de cassar a chapa Dilma-Temer) como ruim, por trazer uma nova ruptura constitucional. Ainda acha isso?
LFA: Eu sou contra. A irrupção de um novo prazo para eleição é mais um elemento de instabilidade constitucional. Além disso, tem dois subtextos no pedido de nova eleição, sobretudo quando ela foi proposta por Dilma.
Ela pedir nova eleição é dizer que quem achava que ela não tinha condição de cumprir esse mandato até o fim tinha razão. O segundo subtexto é acreditar que Temer vai estar de acordo, porque é preciso que ele esteja. Isso ilustra bastante a confusão mental que o PT e a esquerda estão vivendo.
Rui Falcão, há quinze dias, disse que era contra eleições por causa do momento em que elas ocorreriam, que não há condições. Ele achava que se deveria arregimentar força para a próxima eleição, se concentrar na disputa municipal para mobilizar forças. Mas agora ele propõe Diretas-Já. As razões que ele deu antes não são mais válidas? Então ele tem que explicar, dizer que se enganou, mas nem isso ele se dá ao trabalho.
O outro argumento, notadamente avançado pelo [líder do MST, João Pedro] Stedile, é de eleger uma constituinte exclusiva, e eu acho um absurdo. A relação de forças é totalmente desfavorável para a esquerda, e os movimentos sociais estão desarticulados.
Isso elegeria uma constituinte ultraconservadora, que poderia fazer o que bem entendesse, desde acabar com a CLT a voltar com a monarquia. É um tiro no pé horrível para o setor progressista brasileiro.
CC: A nova oposição parece se organizar ao redor dessa proposta. Acha que é um erro de estratégia?
LFA: Eu acho que é um tipo de inconsciência total. É não ver o que se chama relação de força, e nessa relação a esquerda toda está na defensiva.
CC: Qual o peso das eleições municipais para a disputa política no Brasil?
LFA: Há uma dinâmica de eleição municipal em São Paulo que vem desde o século XVII, das oligarquias de poder, mas agora também é um momento em que São Paulo tem um papel nacional, é uma primária da eleição presidencial. Se o PT perder, vai para o fundo do poço. Se o PSDB ganhar, ele, como existe, acaba, porque vai haver um racha.

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