Um grito contra o estupro
Um grito contra o estupro
Adolescente violentada por pelo menos 33 homens no Rio de Janeiro expõe a falência da sociedade brasileira. Diante da gravidade da situação, governo federal prepara ações emergenciais para conter a onda de violência sexual que vitima uma mulher a cada 11 minutos
Uma adolescente de 16 anos desacordada numa casa de dois cômodos à mercê de pelo menos 33 homens. Um vídeo que viraliza nas redes sociais. Comentários machistas, incentivando a violência e ridicularizando a vítima. O estupro coletivo ocorrido na Zona Oeste do Rio de Janeiro no sábado 21 deixou o País atônito. O caso chocou não só pela barbárie, mas pela prepotência dos criminosos, que filmaram o atentado e publicaram imagens da menina depois de violentada na internet. Ao mesmo tempo em que gerou revolta, a postagem tornou o fato público. Simultaneamente, as mulheres começaram a se manifestar nas redes sociais, em repúdio ao ocorrido. A principal mensagem era: não foram 33 contra 1, mas 33 contra todas nós (leia algumas manifestações criadas na página anterior). A divulgação da selvageria gerou uma reação internacional, até porque o Rio será palco do maior evento esportivo do planeta, a Olimpíada, em agosto. Na quinta-feira 26, ONU Mulheres divulgou uma nota repudiando o crime.
O presidente Michel Temer emitiu uma nota de indiginação. “É um absurdo que, em pleno século 21 tenhamos que conviver com crimes bárbaros como esse”, disse Temer, que lembrou ter sido pioneiro na criação da Delegacia da Mulher, no Governo de Franco Montoro (1982-1986). Diante da gravidade da situação, o Ministro da Justiça Alexandre de Moraes decidiu mudar a pauta da reunião que já estava marcada com todos os secretários de Segurança para a terça-feira 31. Eles agora irão discutir formas de combate à violência contra a mulher. “Iniciaremos um efetivo combate a esses crimes hediondos”, disse Moraes. Em entrevista à ISTOÉ, a secretária nacional de Direitos Humanos Flavia Piovesan, responsável pelas questões femininas, adiantou parte da pauta da reunião. “Vou pedir a criação de uma força tarefa para combater a violência contra a mulher, núcleos especializados em abordar o assunto e a implementação completa da Lei Maria da Penha”, disse. Foi também diante de um caso de estupro coletivo que a Índia mudou sua legislação (leia na pag. 56). Pena que o Brasil precisou chegar a esse ponto.
A selvageria do Rio de Janeiro está longe de ser um caso isolado, pois, a cada 11 minutos, ocorre um estupro no País. Um dia antes, por exemplo, uma adolescente de 17 anos foi violentada por cinco homens em Bom Jesus, no Piauí. Em 2015, no mesmo Estado, quatro meninas foram estupradas por cinco homens na cidade de Castelo, num caso que também ficou famoso pela brutalidade. O episódio da adolescente carioca aconteceu em uma comunidade pobre da zona oeste do Rio de Janeiro. Lucas Duarte, 19 anos, desconfiou que sua namorada o traía e se achou no direito de arquitetar o estupro coletivo seguido de exposição na internet como vingança. A sensação de impunidade que inflava os agressores foi tamanha a ponto de um deles, Raphael Belo, de 41 anos, tirar uma selfie ao lado da vítima, com a boca aberta em escárnio – mesmo tom adotado nos comentários feitos em perfis de redes sociais que divulgaram o crime na terça-feira, 24 (leia ao lado alguns que ilustram a cultura machista que impera no País). “Amassaram a mina, intendeu ou não intendeu? kkk” (sic), foi o que publicou Michel Brasil, de 20 anos, ao divulgar as imagens na rede. Depois de uma avalanche de críticas de internautas, o post foi apagado, bem como a conta de Michel. Ele, Raphael, Lucas e mais um homem, Marcelo Corrêa, de 18 anos, foram identificados, mas até o fechamento desta edição não tiveram os pedidos de prisão realizados. O secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, afirmou na sexta-feira 27 que a polícia não descansará até prender todos os envolvidos. Enquanto isso, a adolescente de 16 anos postou numa rede social: “Todas podemos um dia passar por isso… Não, não dói o útero e sim a alma… Realmente pensei que seria julgada mal.”
Segundo a polícia carioca, os responsáveis pelo estupro coletivo são envolvidos com o tráfico de drogas. “Mas essas situações acontecem desde as classes mais altas às mais vulneráveis, das universidades aos bailes funk. A violência naturalizada contra a mulher é democrática, atinge a todas”, diz a promotora de Justiça Silvia Chakian, coordenadora do núcleo de violência contra a mulher do Ministério Público de São Paulo. Chakian afirma que, ao postarem um vídeo da garota estuprada na internet, esses criminosos têm a certeza da impunidade. “É um descaso absoluto com a Justiça, com as leis, com as instituições”, diz a promotora, que faz um alerta: as pessoas que compartilharam esses vídeos, ou postam mensagens ridicularizando a mulher, praticam uma violência tão grave quanto. “Isso é repugnante e revela um lado do ser humano que a gente hesita em reconhecer que existe.”
Ridicularizar e desmerecer a vítima da violência sexual, prática comum de grande parte da sociedade brasileira, abre uma porta para que novos crimes aconteçam, ao mesmo tempo em que impedem novas denúncias, pois intimidam as vítimas. “Há uma cultura que naturaliza, que justifica, que coloca sobre a mulher a culpa, porque ela sai à noite, porque a saia é curta. Existe um pensamento de que elas teriam que estar presas dentro de casa, só que mesmo em casa elas são agredidas”, diz Leila Linhares Barsted, advogada e coordenadora executiva da ONG Cepia. Com medo, muitas preferem se calar. “Daí surge uma permissividade em relação aos crimes. Os números são altos, mas há uma subnotificação.” O dado mais recente de estupros notificados aponta que, em 2014, quase 50 mil mulheres foram violentadas, mas estima-se que as vítimas cheguem a 500 mil anualmente. E esses dados seriam ainda mais altos se muitas não preferissem o silêncio. Por outro lado, há ainda casos de vítimas que denunciam – mas seus depoimentos não recebem o devido crédito. Recentemente, em Olímpia, no interior paulista, o delegado Moacir Rodrigues Mendonça foi absolvido da acusação de ter estuprado a própria neta quando ela tinha 16 anos, por não haver “prova segura” para a condenação, segundo o juiz Eduardo Luiz de Abreu Costa, ainda que exista um detalhado relato feito pela garota, que tentou se matar com uma arma do pai após o ocorrido. O avô estuprador afirma que houve consentimento. O Ministério Público vai recorrer da decisão.
A legislação brasileira avançou nos últimos dez anos com a criação da Lei Maria da Penha, mas, segundo Silvia Chakian, do MP-SP, no que diz respeito à dignidade sexual da mulher, a evolução foi praticamente nula. Desde 2009, além da conjunção carnal, atos libidinosos também são considerados estupro. Para esse tipo de crime, é prevista uma pena de seis a dez anos de reclusão. E se a vítima for menor de 18 anos e maior de 14 anos – como do caso da menina do Rio de Janeiro – a pena vai de 8 a 12 anos. “Além disso, segundo a jurisprudência internacional, estupros coletivos se equiparam à tortura porque violam a integridade física e moral da vítima”, diz a secretária Flávia Piovesan. A divulgação de vídeos que expõem a vítima nas redes sociais revela que os agressores não temem as punições. “Não temos um crime específico que descreva a conduta de compartilhar imagens”, afirma Silvia. Nesse sentido, a vítima sofre o dano em si e com a viralização das imagens.
Imersos na cultura do machismo, a ponto de, na maioria das vezes, nem a perceberem, os brasileiros dão, diariamente, o exemplo de como construir um ambiente propício para crimes de gênero. “Atos cotidianos colaboram para a naturalização da violência. Quando uma pessoa faz brincadeiras com o corpo de uma mulher, achando que tudo é normal e inofensivo, aumenta a possibilidade da violência”, afirma a psicóloga Carolina Leme Machado de Godoy, especialista em saúde da mulher e doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Neste repertório entram desde piadas do tipo “lugar de mulher é na cozinha” a assédios que são vistos pelos homens como elogio. “São pequenos sinais de uma sociedade patriarcal com a qual convivemos há muitos anos.” Para a militante da Marcha Mundial das Mulheres, Maria Julia Monteiro, encarar esses atos como se fossem corriqueiros, e deixá-los passar em branco, colabora para construir um imaginário de que as mulheres são realmente inferiores. Outro problema é chamar os agressores de “doentes”. Segundo Maria Julia, usar esses termos é não reconhecer um problema social, generalizado e grave. “Há uma construção do estereótipo como forma de não perceber os homens como agressores, como se eles não estivessem no controle de suas ações. Isso é uma forma de justificar a violência como se ela não merecesse punição”, diz.
Na mesma medida em que crimes e abusos contra mulheres têm aumentado, a resistência feminina para barrar o avanço do machismo também cresce. Contra o caso de estupro no Rio, já houve um protesto em Curitiba, na quinta-feira 26, e outros estão programados para São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Florianópolis, além do Rio. “As mulheres estão conquistando mais a própria autonomia e ocupando os espaços públicos”, afirma Maria Julia. Mas essa movimentação não é de hoje. Desde o ano passado, mais sistematicamente, elas têm se mobilizado contra o machismo e o retrocesso em seus direitos, como a tentativa de mudar a legislação do aborto em caso de estupro. Entre as adolescentes, a busca pela igualdade de gênero é ainda mais latente. Coletivos feministas têm sido criados por meninas cada vez mais jovens em escolas e universidades. As redes sociais, por sua vez, estimulam a organização de grupos, protestos e o compartilhamento de experiências. A internet, explica Leila, da ONG Cepia, permite a manifestação de repúdio e a mobilização ao mesmo tempo. “Ela veio para dar mais força à militância que já existia”, afirma Maria Julia Monteiro, da Marcha Mundial das Mulheres. Adolescentes, jovens adultas, maduras, são elas que precisam abrir corajosamente caminho em meio à covardia de uma sociedade machista e doente. É hora de dar um basta ao estupro.
A Índia depois de “Nirbhaya”
Em 2012, um estupro coletivo em Nova Déli chocou o mundo e mudou as leis da Índia. Uma mulher de 23 anos morreu após ser estuprada por seis homens num ônibus em movimento. Protestos em massa pressionaram a Justiça a condenar quatro dos criminosos à morte – o quinto homem se matou na prisão e o sexto, menor, teve sentença mais branda. A Índia mudou a definição de estupro no código penal e aumentou as condenações. Delegacias e hospitais receberam novas orientações, um disque-denúncia foram criado e motoristas de ônibus são obrigados a receber aulas de gênero. Ainda assim, as estatísticas de crimes contra a mulher subindo. Estima-se que todos os dias 100 mulheres sejam estupradas no país. Em 2014, o número de estupros cresceu 9%. “O caso ‘Nirbhaya’ (‘sem medo’, em livre tradução) foi simbólico. Era uma moça corajosa que estudava, tentando alçar voos, e foi morta com requintes de crueldade”, diz a jornalista Florência Costa, que viveu sete anos na Índia e é autora de “Os Indianos” (Ed. Contexto). “‘Nirbhaya’ significava a indignação da sociedade, que foi às ruas ‘sem medo’.” Casada com o jornalista indiano Shoban Saxena, Florência acredita que a lei mais severa seja importante, mas “mudar a cultura é um caminho longo.”
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