O AMOR DO PAPA JOÃO PAULO II
As cartas do papa João Paulo II
Correspondências de 30 anos entre religioso e filósofa revelam face surpreendente de um dos pontífices mais rigorosos com as questões morais do século 20
Débora Crivellaro (debora@istoe.com.br)
Eles se aproximaram pelas vias intelectuais. Filósofos, tinham o projeto de um livro em comum. A afinidade cresceu e era alimentada por cartas, cada vez mais caudalosas. Os encontros aconteciam em Cracóvia, onde ele morava, ou na casa de campo dela, nos Estados Unidos. Frequentavam estações de sky, acampavam juntos, confraternizavam em almoços, sempre na presença de familiares e amigos. Ela estava completamente apaixonada. Ele tentava manter a relação no terreno da amizade. Afinal, ela era casada e mãe de três filhos pequenos. E ele, cardeal de Cracóvia e, poucos anos depois, papa. Na última semana, veio a público, por meio de centenas de cartas e fotos, a relação de João Paulo II, o mais popular pontífice e uma das figuras mais influentes do século XX, com a filósofa de origem polonesa Anna-Teresa Tymieniecka. As cartas reveladas são do pontífice para a filósofa. Mas em nenhuma linha do vasto material está explícito um vínculo amoroso. Está exposto, sim, um homem lutando para deixar no plano fraternal um sentimento que teimava transbordar para outros terrenos.
REGISTRO
Acima, Karol Wojtyla descontraído em um dos acampamentos que
freqüentava. Abaixo, um dos últimos encontros dos dois
As centenas de cartas trocadas entre os poloneses Karol Wojtyla e Anna-Teresa Tymieniecka estavam guardadas na Biblioteca Nacional da Polônia desde 2008. Foram vendidas, junto com outras centenas de fotos, pela própria Anna-Teresa, que morreu há dois anos. Vieram à tona pela BBC, que também produziu um documentário, veiculado na segunda-feira 15, no Reino Unido. As cartas tornadas públicas foram apenas as do papa, mas a biblioteca tem a cópia de todas as que a filósofa mandou para o pontífice. Com o material disponível, é possível tecer, com alguma segurança, a bonita história dos dois. Eles se aproximaram em 1973, quando a intelectual de raízes francesas aristocráticas Anna-Teresa se ofereceu para traduzir para o inglês o livro “A Pessoa e o Ato”, do então arcebispo de Cracóvia. Logo, a relação, de formal, se tornou íntima. Ela era casada com Hendrik Houtthakker, um distinto economista de Harvard, que mais tarde se tornou cavaleiro papal, pelos serviços prestados ao Vaticano, e morava nos Estados Unidos. O encantamento da filósofa pelo religioso se tornou explícito em 1975, segundo Edward Stourton, jornalista da BBC que revelou o caso. Ele teria tido acesso a uma das cartas de Anna-Teresa para Wojtyla em que ela dizia que desejava estar nos braços dele e permanecer lá em felicidade. Também pedia desculpas pelo fato de não conseguir controlar seus sentimentos. A biblioteca polonesa não quis divulgar os textos da filósofa, alegando que João Paulo II é uma figura muito importante para o país – o que aumenta ainda mais a curiosidade sobre o conteúdo.
No ano seguinte, o ainda cardeal deu à jovem senhora um de seus bens mais preciosos, o escapulário que havia ganhado do pai, morto quando ele tinha 20 anos. Foi o presente de Primeira Eucaristia. Na carta que acompanha o relicário, disse: “Uma resposta para as palavras ‘eu pertenço a você’. E continuou: Deus lhe deu para mim e fez-lhe a minha vocação.” Apesar de saber que a relação navegava por águas agitadas, o arcebispo continuava a privar da companhia da família nos Estados Unidos, passando temporadas em Pomfret, na propriedade rural em Vermont. E o sentimento parecia aumentar. Tanto que escreveu, em 1977: “se eu não tivesse essa convicção, alguma certeza moral da Graça, e de agir em obediência a ela, eu não me atreveria a agir assim.” Finalmente, quando se tornou papa, o que poderia colocar fim à intensa amizade, sugeriu que a amiga ligasse para ele: “O telefone tem a vantagem de eu poder ouvir sua voz, mas não durar o suficiente, por isso não substitui uma carta, ou uma conversa real.”
CAMINHADA
À esquerda um encontro de Anna-Teresa e João Paulo II nas dependências
do Vaticano. À direita, eles acampam na propriedade rural dela nos EUA
Ao contrário do que se supõe, a ida do cardeal polonês para o posto mais alto da Igreja Católica não separou os dois. Anna-Teresa foi uma das poucas pessoas autorizadas a entrar no leito de hospital em 1981, quando João Paulo II foi baleado na Praça São Pedro. E visitou-o regularmente em seus aposentos desde que ele desenvolveu a doença de Parkinson, a partir dos 70 anos. Pessoas próximas aos dois também asseguram que a amiga de 30 anos estava presente em seu leito morte, em 2005. Em 2002, em uma de suas últimas cartas, o papa escreveu: “Eu penso em você todos os dias e gostaria de estar com você diariamente.”
Sob todos os ângulos que se observa a história de Anna-Teresa Tymieniecka e Karol Wojtyla é difícil não enxergar uma história de amor. Ela era profundamente apaixonada e, ele, convicto de suas escolhas religiosas, tentava manter o controle da situação. “A relação tinha claramente duas dimensões: a emocional e a intelectual”, disse o estudioso de manuscritos Eugene Kistusk. Provavelmente os dois não se relacionaram fisicamente, dizem os vaticanistas, porque João Paulo II se tornou santo em tempo recorde, nove anos – e o Vaticano sabia das cartas, tanto que recomendou que elas não fossem divulgadas. “Um sentimento como esse não macula o celibato”, diz o padre Denilson Geraldo, especializado em Direito Canônico. Informado, o Vaticano restringiu a relação à amizade.
Mas o mais surpreendente é que essas cartas revelam uma face humana de um papa que apertou de forma inclemente o cinto de castidade dos católicos, condenando de métodos contraceptivos a aborto e segundo casamento. “Estamos falando de São João Paulo II”, diz Carl Bernstein, o famoso jornalista do Watergate e um dos primeiros biógrafos de Wojtyla. “Essa é uma relação extraordinária. Não é ilícita, no entanto. Mas ela muda a nossa percepção sobre ele.”
Colaborou Raul Montenegro
Fotos: Reprodução
Fotos: Reprodução
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