A última pedalada de Clarindo Testemunhas contestam motorista que matou um dos maiores ciclistas do mundo e dizem que havia excesso de velocidade e ultrapassagens proibidas. Mas a polícia se limitou a registrar o caso
A última pedalada de Clarindo
Testemunhas contestam motorista que matou um dos maiores ciclistas do mundo e dizem que havia excesso de velocidade e ultrapassagens proibidas. Mas a polícia se limitou a registrar o caso
Fabíola Perez e Ludmilla Amaral
O encontro entre ciclistas estava marcado para as 6h30 da segunda-feira 25, na praça Palmares, em Santos. Jacó Amorim, Paulo Blade, Alexandre Bergamo e Eron Moura já estavam prontos para percorrer 100 quilômetros. Cláudio Clarindo, 38 anos, um dos dez melhores ciclistas de longa distância do mundo, foi o último a chegar. O dia ensolarado e o asfalto bom eram os pré-requisitos necessários para o início do treino. Equipados com roupas e capacetes de segurança, os cinco amigos fizeram a travessia de Santos, litoral de São Paulo, até Vicente de Carvalho, no Guarujá, de barco para evitar a rodovia Piaçaguera, conhecida pelo alto número de assaltos. Clarindo pedalava mais à frente, ao lado do parceiro Jacó. No quilômetro 244 da rodovia Rio-Santos, um carro se chocou com as bicicletas no acostamento, arremessando o corpo de Clarindo para o meio do mato. O atleta morreu minutos depois. Jacó sofreu uma fratura no fêmur e está internado no hospital Santo Amaro, no Guarujá. A morte violenta de um dos maiores ciclistas do mundo não foi suficiente para agilizar as investigações no 1º Distrito Policial de Santos, responsável pelo caso. O delegado Max Pilotto sequer ouviu o acusado, o condutor técnico Gabriel Bensdorf Aguiar de Oliveira, que apresentou uma versão simplista para o acidente, disse que havia dormido ao volante. Também não se preocupou em colher imagens do local, analisar documentos da perícia (que não houve), ou convocar testemunhas. Em contrapartida, pessoas ouvidas por ISTOÉ presentes ao local no momento do acidente contam uma história bem diferente. Descrevem um carro em alta velocidade, obstinado em ultrapassar, ainda que em locais proibidos, que finalmente atravessou duas pistas e, para não se chocar com outros veículos, se atirou no mais frágil: no grupo de ciclistas que seguia no acostamento.
Amigo e parceiro de pedaladas, Paulo Avelino da Silva Filho, conhecido como Paulo Blade, disse à ISTOÉ que todos treinavam no acostamento sentido Bertioga, quando um carro atravessou as duas pistas de faixa contínua, nas quais a ultrapassagem é proibida, e atingiu Clarindo de frente. “Ele e o Jacó jogaram a bicicleta para o lado oposto, mas o carro pegou Clarindo e a perna esquerda de Jacó”, diz. “Vi quando o corpo foi arremessado para a vegetação. Eron e eu entramos no mato para encontra-lo.” O ciclista conta, ainda, que a perícia técnica não foi ao local do acidente. “A cena foi desfeita. Levei as bicicletas e os estilhaços no meu carro”, diz Blade. Segundo o boletim de ocorrência, as fotos não foram feitas “por falta de equipamento fotográfico”. Os registros foram realizados apenas na quarta-feira 27, quando Blade levou as bicicletas até o 1º Distrito Policial de Santos. “Isso atrapalha as investigações, um laudo técnico poderia apontar marcas no asfalto para saber se o motorista estava correndo ou não”, afirma o ciclista.
O motorista que atropelou e matou Clarindo, Gabriel Bensdorf Aguiar de Oliveira, de 24 anos, responderá pelo crime de homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Ele também será indiciado por lesão corporal culposa contra Jacó Amorim. Segundo informações da Polícia Rodoviária, Oliveira não havia ingerido bebida alcoólica. Ao sair do carro, o motorista alegou que havia dormido. “Ele estava chorando, disse que dormiu e pediu perdão”, diz Blade. Contrariando a versão de Oliveira, uma testemunha, que preferiu não ser identificada, afirmou à ISTOÉ que observava o motorista e percebeu que o carro fazia ultrapassagens bruscas. “Estávamos atrás e vimos que o carro tentava passar o veículo da frente o tempo todo, tanto que comecei a ficar preocupada”, diz. “Ele tentou passar um Citroën, mas deu de frente com um caminhão e voltou para a pista.” Segundo a testemunha, havia cinco carros na pista sentido Guarujá e três no sentido Bertioga. O carro tentou passar os cinco veículos, mas sem espaço e, na iminência de colidir, invadiu a outra faixa até se chocar com os ciclistas no acostamento. “Vi que pareciam profissionais porque estavam com os equipamentos de segurança e capacetes”, afirma. Os cinco carros que o motorista teria tentado ultrapassar, segundo a testemunha, trafegavam com uma velocidade de 80 quilômetros por hora. E o motorista estaria a 100 quilômetros por hora. “Ele estava sendo imprudente, acelerava e brecava o tempo todo.”
Relatos como o desta testemunha poderiam contribuir para o avanço das investigações da polícia. Entretanto, até o fechamento desta edição, ela não havia sido chamada para depor, embora tivesse manifestado esse desejo. Na semana passada, além dos depoimentos colhidos no local do crime, apenas Blade foi ouvido na delegacia – isso porque ele foi até lá. “Me antecipei porque estava com as bicicletas no carro e quis leva-las para os peritos”, diz o ciclista. O delegado auxiliar do 1º DP de Santos, Max Pilotto, justifica que a investigação ainda está no início. “Não chegaram imagens das câmeras e só temos o depoimento do policial militar que atendeu à ocorrência”, diz. “Não chegamos a ouvir testemunhas.” Inquirido pela reportagem, Pilotto afirmou que nem o motorista havia sido ouvido. Já o delegado titular, Pedro dos Anjos, disse que Oliveira foi à delegacia na segunda-feira 25 para depor. “Ele disse ter passado mal ou ter dormido ao volante.”
TRAGÉDIA
O motorista Gabriel Oliveira, 24 anos, que dirigia o veículo acima, deve ser indiciado
por homicídio culposo pela morte de Clarindo e por lesão corporal
culposa pelas fraturas sofridas pelo ciclista Amorim
A tragédia envolvendo Clarindo joga luz sobre diversos crimes de trânsito contra ciclistas no País (leia quadro). Os casos são considerados homicídios culposos porque, pela lei, uma pessoa que trafega de forma imprudente ou bebe antes de dirigir não tem intenção de matar alguém, apesar de ter consciência dos riscos. O dolo – quando há a intenção de matar – é considerado, na maioria das vezes, quando o autor do crime prevê o ato. Mas tudo varia de acordo com a interpretação do juiz. No caso de Clarindo, dependendo do teor do depoimento das testemunhas, Gabriel poderia ser indiciado por dolo eventual. “Se disserem que ele estava a 180 quilômetros por hora, podemos pensar em um dolo, mas por enquanto ele está sendo investigado por imprudência”, diz Pilotto. Os ciclistas que estavam com ele, porém, afirmam que o motorista fazia ultrapassagens bruscas e com velocidade acima do permitido.
TESTEMUNHA
O ciclista Paulo Blade, que pedalava com o grupo na segunda-feira, 25
Ser ciclista no Brasil significa enfrentar obstáculos e inseguranças. Somente em São Paulo, o número de acidentes fatais aumentou 34,3% entre 2013 e 2014. Apesar de nos últimos anos a infraestrutura para as bicicletas ter sido reforçada nas capitais, com a implantação de ciclovias e o conseqüente estímulo à locomoção em duas rodas, ainda há muito perigo para quem pedala. “Houve um avanço importante em termos de infraestrutura, mas ainda ficamos muito tensos”, diz Marcos de Souza, do portal Mobilize, especializado na atividade. Ainda falta conscientização de motoristas e ciclistas para que todos possam circular em harmonia e o número de acidentes diminua. No domingo 24, Clarindo havia retornado de um treino de 800 quilômetros entre Santos e Guaranésia, em Minas Gerais. Seu objetivo para 2016 era participar do campeonato mundial de longa distância, em Orlando. Trajetória drasticamente interrompida por mais uma criminosa imprudência. Que sua morte possa mudar esse percurso de impunidade.
Fotos: Daniel Ferreira
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