Ditadura espionou o fotógrafo Sebastião Salgado Documento produzido pelo DOI-Codi revela que Salgado foi monitorado em 1980 pelos militares durante projeto fotográfico nas regiões Norte e Nordeste
Ditadura espionou o fotógrafo Sebastião Salgado
Documento produzido pelo DOI-Codi revela que Salgado foi monitorado em 1980 pelos militares durante projeto fotográfico nas regiões Norte e Nordeste
Eumano Silva
Na noite do dia 31 de dezembro de 1979, o fotógrafo Sebastião Salgado desembarcou no Rio de Janeiro depois de dez anos fora do Brasil. O retorno se tornara possível com a assinatura da Lei da Anistia, quatro meses antes, pelo então presidente, João Figueiredo. Desde 1969, Salgado e sua mulher, Lélia Wanick, viviam em Paris. Haviam saído do Brasil em decorrência do Ato Institucional n° 5 (AI-5), o pacote de normas arbitrárias baixadas pela ditadura militar para aumentar a repressão contra os adversários. O regresso carregava, então, uma forte carga emotiva e era, também, um compromisso profissional do fotógrafo. Na ocasião, ele trabalhava para a agência internacional Magnun e a viagem ao Brasil tinha como objetivo a realização de um projeto fotográfico com foco no Norte e no Nordeste. Salgado não sabia, mas – embora o Brasil estivesse em fase de abertura política – sua jornada no território nacional estava sendo vigiada por espiões dos serviços secretos das Forças Armadas.
A prova do monitoramento do fotógrafo pelos militares ficou registrada em um documento “confidencial” obtido com exclusividade por ISTOÉ. Trata-se do Relatório de Operações (Relop) nº 23, com uma página e meia, arquivado no “Protocolo Sigiloso” com o número 113. Tem data de 10 em abril de 1980 e foi produzido pelo Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) de Brasília. Com similares nas principais capitais do País, esse órgão reuniu representantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica e integrou um dos braços mais sanguinários da repressão contra os opositores ao regime fardado. “Nunca tive conhecimento de que estava sob observação dos militares nessa viagem”, afirmou Salgado ao saber por ISTOÉ da existência do documento. “Algumas informações estão corretas, mas a maior parte do que está escrito é fabulação”, explicou o fotógrafo.
O relatório afirma que, na viagem ao Brasil, Salgado “estaria realizando levantamentos fotográficos” para a Magnun (erradamente grafada como “Magnus”) sobre pontos de prostituição, exploração e tráfico de menores nas margens da rodovia Belém-Brasília. O trabalho também abordaria a criminalidade na Baixada Fluminense, o Projeto Jari e “outros problemas brasileiros”. Essas informações ainda dependiam de confirmação, segundo o texto. Na verdade, dessa lista, a única pauta de fato executada pelo fotógrafo foi no Projeto Jari, o gigantesco empreendimento patrocinado na década de 1970 pelo bilionário americano Daniel Ludwig e instalado na divisa do Amapá com o Pará para a produção de celulose e energia. Esse trabalho foi publicado na “Life”, revista americana que deixou de circular no ano 2000. Entre as imagens feitas na passagem pelo Jari estão as duas fotos publicadas nesta reportagem, gentilmente cedidas pelo autor.
MISTÉRIOS AMAZÔNICOS
Agentes militares desconfiavam da missão de Salgado no Projeto Jari,
na fronteira do Amapá com o Pará. Ali o fotógrafo registrou
a cena acima para a revista "Life"
Os outros tópicos referentes ao trabalho fotográfico não passavam de suposição dos agentes secretos da ditadura. Sem detalhes sobre os planos de Salgado, os militares estavam bem informados em relação ao seu paradeiro em Brasília. Tratado como “nominado” no relatório, o fotógrafo estava hospedado na casa do amigo Rezende Ribeiro de Rezende, filho do então governador do Espírito Santo, Eurico Rezende, ex-senador pela Arena, o partido que dava sustentação à ditadura. O endereço de Ribeiro, na Super Quadra Sul 111, aparece três vezes no relatório. O documento também afirma que, quando voltasse do Projeto Jari, Salgado reencontraria sua mulher em Brasília.
Não foi bem assim. Em entrevista concedida por telefone à ISTOÉ, Salgado contou que saiu da capital federal em um carro emprestado e chegou a Belém “em um tiro só”. De lá, prosseguiu até o Jari. Terminado o trabalho, ele esticou a jornada no mesmo carro até o Nordeste, onde ficou seis meses. “Meu interesse era conhecer o Brasil”, afirma. Nessa temporada, ele captou imagens de trabalhadores rurais, de movimentos remanescentes das antigas Ligas Camponesas e também das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da Igreja Católica.
Formado em economia pela Universidade Federal do Espírito Santo, com pós-graduação pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Paris, Salgado só começou a trabalhar no ofício que o tornou conhecido em todo o mundo alguns anos depois de se mudar para a França. Os problemas com os militares começaram ainda no tempo de estudante no Brasil. Antes de trocar a América do Sul pela Europa, Salgado participou de mobilizações estudantis contra a ditadura e se aproximou da Ação Popular, uma das organizações de esquerda que combateram o governo militar. Com o endurecimento do regime, ele e Lélia se mudaram para Paris. Na capital francesa, o casal atuou na rede de solidariedade aos exilados brasileiros, e também de outros países, que chegavam depois de passar por prisões e torturas. Os dois não sabiam, mas já nesse período eram espionados. Recentemente, eles tiveram acesso a documentos do Serviço Nacional de Informações (SNI) com descrições minuciosas sobre a casa onde viviam.
Por causa de sua militância na Europa, os agentes secretos da ditadura investigaram até a vida de Jean Monteux, diretor da Agência Gamma, onde trabalhou antes de entrar para a Magnun. Isso aconteceu apenas porque Monteux acompanhou Salgado ao consulado brasileiro numa tentativa de renovar o passaporte, o que não aconteceu. O fotógrafo só obteve o documento depois de entrar com um processo no Itamaraty. Quando voltou ao Brasil ele sofreu mais uma intimidação ao visitar o Palácio do Planalto para pedir apoio ao trabalho da imprensa estrangeira. “Disseram-me que, se alguém denunciasse a destruição da Amazônia, não poderia mais trabalhar no País”, disse à ISTOÉ.
Com o fim da ditadura, apesar da resistência dos militares, milhares de papéis produzidos no período foram tornados públicos. O documento do DOI-Codi usado nesta reportagem faz parte dos arquivos do Exército entregues pelo cabo José Alves Firmino, em 1997, à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. O passo mais importante no esclarecimento do submundo da repressão política será dado no dia 10 de dezembro, data da divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), instalada em 2012 pela presidente Dilma Rousseff.
Fotos: AFP PHOTO/FRED DUFOUR; Sebastião SALGADO/Amazonas images, Sebastião SALGADO/Amazonas Images
Comentários
Postar um comentário
TODOS OS COMENTÁRIOS SÃO BEM VINDOS.MAS SÃO DE INTEIRA RESPONSABILIDADE DE QUEM OS ESCREVE!