O PLANETA ÁGUA VAI SECAR?
O PLANETA ÁGUAVAI SECAR?
Mais de 70% da Terra é coberta por água. Mesmo assim, 768 milhões de pessoas mundo afora não têm nenhum acesso à água tratada. Entenda como isso é possível.
POR LUCAS MUNIZ BAPTISTA E OTAVIO COHEN*
Já era. A crise da água chegou para mudar a sua vida definitivamente a curto, médio e longo prazo. Não importa se você mora num lugar em que o nível dos reservatórios ainda é razoável - a crise também tem a ver com você. E é um pouco culpa sua também. Não só sua, claro. Também tem as mudanças climáticas (sim, elas existem), a contaminação das fontes, o mau gerenciamento dos recursos hídricos e o crescimento demográfico. A sua parte - reduzir o desperdício - é uma das mais fáceis de colocar em prática. Mas também é importante entender como funciona todo o resto.
TANTO MAR
Mais de 97% da água da Terra é salgada. Do restante, apenas 0,4% está na superfície
Fonte: Guia do Estudante
A água da Terra não vai acabar assim, de uma hora para a outra. Temos mais ou menos 1,4 bilhão de km³ de água. Aí você tira da conta a água salgada dos oceanos, todo o volume dos aquíferos subterrâneos e as geleiras, e você chega na grandiosa quantia de 132 mil km³ de água superficial que podemos, de fato, usar. É pouquíssimo. Ainda mais se considerarmos que esse número não mudou muito desde que o mundo é mundo. Um dos problemas é que, enquanto a quantidade de água doce do mundo continua igual, a população cresceu. Em 1950, éramos 2,5 bilhões. Em 2050, a previsão da ONU é de que seremos 9,3 bilhões. É como se a fila do banheiro da sua casa mais do que triplicasse de tamanho. Aí, não há caixa d'água que sustente. Aliás, não é só de uma caixa d'água maior que a gente precisa. Para dar conta de tanta gente, também é necessário gerar mais energia, produzir mais comida, mais roupas, mais tudo. Uma boa parte desse "tudo" precisa de água. Nas próximas 3 décadas e meia, a demanda global deve aumentar 55%. Se considerarmos que a indústria e a agropecuária consomem 90% da água do mundo, a coisa fica mais feia.
Os números ajudam a explicar como pode haver crise hídrica em um país com uma bacia hidrográfica tão abundante. Tem outros fatores também: a maior parte da população se concentra perto do litoral e longe de grandes mananciais, como o Rio Amazonas, o maior do mundo em volume. Além disso, a água que chega até a sua torneira provavelmente passa por tubulações construídas nos anos 1940 ou 1950. Não é difícil imaginar que um sistema como esse facilite o desperdício. A cada segundo, mais de 1200 litros são jogados fora no processo de distribuição. Com toda a água desperdiçada aqui ao longo de um dia, daria para abastecer 932 milhões de pessoas (ou 3 vezes a população dos EUA). Isso porque exploramos bem pouco - e bem mal - os nossos recursos hídricos.
COPO MEIO VAZIO
Considere o seguinte:
20 LITROS
Uma torneira aberta por um minuto gasta mais ou menos essa quantidade
1.000 LITROS
OU 50 GALÕES DE ÁGUA MINERAL
1 CAIXA D'ÁGUA
Com essa quantidade de água dá para abastecer uma família de 6 pessoas durante um dia
25.000 LITROS
OU 25 CAIXAS D'ÁGUA
1 CAMINHÃO PIPA
(25 M³ OU 25.000 LITROS DE CAPACIDADE)
Parece muito, mas com 25 mil litros só dá para produzir dois quilos de carne de boi
2.500.000 LITROS
OU 100 CAMINHÕES PIPA
1 PISCINA OLÍMPICA
(50 M DE COMPRIMENTO / 25 M DE LARGURA / 2 M DE PROFUNDIDADE)
Segundo a ONU, essa água seria suficiente para suprir as necessidades de consumo e higiene de uma pessoa por 62 anos. Mas a verdade é que usamos bem mais do que isso
Fonte: Revista Superinteressante, edição 337, setembro/2014
A desigualdade nos recursos hídricos e na distribuição cria situações bem diferentes em cada canto do Brasil. Veja a quantidade de água disponível por segundo para a população de cada região (projeção para 2015):
NORDESTE
Não tem mistério: no Nordeste, os maiores vilões são a falta de chuva e a escassez de rios
QUANTA ÁGUA TEM DISPONÍVEL
1 PISCINA OLÍMPICA E 9 CAMINHÕES PIPA
2.738.000 LITROS POR SEGUNDO
DE QUANTO A POPULAÇÃO PRECISA
5 CAMINHÕES PIPA E 11 CAIXAS D'ÁGUA
136.000 LITROSPOR SEGUNDO
QUANTO RECEBE
24 CAIXAS D'ÁGUA
24.000 LITROSPOR SEGUNDO
SUDESTE
A concentração de pessoas e o planejamento ruim facilitam o surgimento de uma crise como a atual
QUANTA ÁGUA TEM DISPONÍVEL
2 PISCINAS OLÍMPICAS E 19 CAMINHÕES PIPA
5.476.000 LITROS POR SEGUNDO
DE QUANTO A POPULAÇÃO PRECISA
11 CAMINHÕES PIPA
275.000 LITROSPOR SEGUNDO
QUANTO RECEBE
105 CAIXAS D'ÁGUA E 30 GALÕES DE ÁGUA
105.600 LITROSPOR SEGUNDO
SUL
É preciso ampliar os sistemas de distribuição já existentes na região
QUANTA ÁGUA TEM DISPONÍVEL
2 PISCINAS OLÍMPICAS E 55 CAMINHÕES PIPA
6.389.000 LITROS POR SEGUNDO
DE QUANTO A POPULAÇÃO PRECISA
1 CAMINHÃO PIPA E 14 CAIXAS D'ÁGUA
39.000 LITROSPOR SEGUNDO
QUANTO RECEBE
26 CAIXAS D'ÁGUA E 25 GALÕES DE ÁGUA
26.500 LITROSPOR SEGUNDO
CENTRO OESTE
A região tem aquíferos e bacias abundantes. Mas os mananciais urbanos estão poluídos
QUANTA ÁGUA TEM DISPONÍVEL
4 PISCINAS OLÍMPICAS E 84 CAMINHÕES PIPA
14.603.000 LITROS POR SEGUNDO
DE QUANTO A POPULAÇÃO PRECISA
1 CAMINHÃO PIPA E 14 CAIXAS D'ÁGUA
39.000 LITROSPOR SEGUNDO
QUANTO RECEBE
8 CAIXAS D'ÁGUA
8.000 LITROSPOR SEGUNDO
NORTE
Infraestrutura precária e falta de boa vontade política tornam o cenário absurdo
QUANTA ÁGUA TEM DISPONÍVEL
24 PISCINAS OLÍMPICAS E 82 CAMINHÕES PIPA
62.064.000 LITROS POR SEGUNDO
DE QUANTO A POPULAÇÃO PRECISA
1 CAMINHÃO PIPA E 20 CAIXAS D'ÁGUA
45.000 LITROSPOR SEGUNDO
QUANTO RECEBE
6 CAIXAS D'ÁGUA
6.000 LITROSPOR SEGUNDO
Se está ruim por aqui, imagina só nas zonas áridas em que a água é mais rara - e bem mais cara. Nos lugares mais secos do planeta, convencer a população a não lavar a calçada com mangueira e tomar banhos mais curtos não faz tanto sentido. O problema lá é outro: o aquecimento global.
CHAPA QUENTE
Como o aquecimento global intensifica a chuva em algumas regiões e castiga outras com longos períodos de seca
Resumo da história: os raios do Sol, que chegam para fornecer energia para a Terra, refletem-se no planeta. Mas, graças aos gases do efeito estufa, ficam presos na atmosfera. Até aí tudo bem. Sem efeito estufa, passaríamos um frio danado à noite, pois todo o calor do Sol se dissiparia. Mas nos últimos 60 anos, a concentração dos gases está tão alta que a energia solar tem muito mais dificuldade para ultrapassar a camada para sair da atmosfera. É como se tentássemos usar uma peneira suja para coar alguma coisa. Não dá para saber ao certo que parte dessa sujeira é nossa responsabilidade. Mas as consequências estão aí: o mundo vira uma panela de pressão, as geleiras derretem, o nível dos oceanos sobe e o mundo inteiro começa a reclamar do calor insuportável.
Quem olha para o globo terrestre percebe que há bem menos massas terrestres ao sul da linha do Equador. A maior parte da vegetação terrestre fica ao norte. Por isso, quando o Hemisfério Norte está inclinado na direção do Sol, ou seja, na primavera e no verão do norte do planeta, as folhas surgem e “respiram” o CO₂. Então, a quantidade do gás na atmosfera cai. Mas quando acontece de o sul estar inclinado, as folhas emitem o gás e a quantidade volta a subir. Portanto, é como se a Terra inspirasse e expirasse uma vez por ano.
Quando o vento entra no jogo, as coisas ficam mais complexas. Os ventos de alta pressão fazem o ar circular no sentido anti-horário no Hemisfério Sul e no sentido oposto no Hemisfério Norte, em direção às regiões equatoriais. A faixa em que esses ventos se encontram é chamada de Zona de Convergência Intertropical (ZCIT). Lá se concentra o ar úmido que influencia bastante a ocorrência de chuvas. É por causa dela que algumas cidades do Norte do Brasil sofrem com a chuva incessante. A variação da ZCIT um pouquinho para o norte ou para o sul (o que pode acontecer se a temperatura do oceano mexer com a pressão atmosférica) vai definir onde chove. Por exemplo, se as águas do Atlântico Sul estiverem mais frias que as do Atlântico Norte, as chuvas chegam na Amazônia e o Nordeste brasileiro é castigado com a seca.
Não é só isso. Por causa do El Niño, em ciclos de 2 a 7 anos, os ventos de alta pressão ficam mais fracos e as águas do Oceano Pacífico ficam mais quentes na linha do Equador. A água que evapora nessas regiões forma nuvens que mexem com a circulação do ar e alteram o clima no mundo todo. Uma das consequências desse processo é a movimentação da ZCIT um pouco mais para o norte - e a redução da chuva no sertão brasileiro.
E O VENTO LEVOU
Como a temperatura dos oceanos e o vento influenciam a chuva e as secas
com seca
sem seca
O QUE AGRAVA A SECA
Se as águas estiverem mais frias no sul, entretanto, as chuvas são despejadas na Amazônia e sobre a ilha de Marajó, e não atingem o Nordeste.
Se as águas estiverem mais frias no sul, entretanto, as chuvas são despejadas na Amazônia e sobre a ilha de Marajó, e não atingem o Nordeste.
Fonte: Guia do Estudante
VIDAS SECAS
A transposição do Rio São Francisco pode resolver os problemas do semiárido brasileiro. Ou destruí-lo ainda mais
No Brasil, a seca atinge quase 10 milhões de pessoas. Mais de 1430 municípios declararam emergência até junho de 2013. São 3,6 bilhões de reais em perdas de lavouras, em especial de milho e feijão, principais alimentos do sertanejo. A pecuária também sofre com isso: mais de 16% do gado nordestino não sobreviveu à sede. A partir da atual seca, a mais grave dos últimos 50 anos, o governo teve de intensificar os programas de assistência técnica e social, como o financiamento da produção agropecuária, venda subsidiada de milho e distribuição do Bolsa Estiagem, um auxílio financeiro distribuído a agricultores familiares que vivem em municípios em estado de emergência.
Para atenuar os efeitos da seca, o projeto de transposição do Rio São Francisco foi lançado em 2007. Nele, estão previstas a construção de canais que vão transferir de 1% a 3% das águas do “Velho Chico” para rios e açudes que atualmente secam durante a estiagem do semiárido nordestino. O projeto não escapa de críticas. Há quem diga que a transposição beneficiará mais os grandes fazendeiros da região e não atingirá muitas comunidades. Isso sem contar os impactos ambientais da obra.
Por mais que a intenção inicial seja boa, nem toda transposição resolve o problema da aridez. Até os anos 1960, o Mar de Aral era o quarto maior lago do mundo. Na época da União Soviética, dois rios que abastecem o Aral foram desviados para irrigar regiões secas da Ásia, entre o Uzbequistão e o Cazaquistão. Mas os projetos deram muito errado. Hoje, o Mar de Aral não tem nem 10% da área que tinha antes. Suas águas são salgadas demais e poluídas por agrotóxicos. O fiasco das transposições transformou o ecossistema do Aral, tornando-o desértico. A população da região passou a sofrer com doenças respiratórias e câncer, males causados pela areia poluída do leito do Aral. Hoje, a situação parece quase irreversível, pelo menos a médio prazo.
Mas isso não significa que a economia de água dentro de casa seja em vão. Afinal, a água que deixa de escoar pelo seu ralo é basicamente a mesma da chuva no Amazonas ou a dos rios da Ásia. Se as mudanças climáticas e até mesmo o crescimento populacional são inevitáveis, ter uma noção melhor sobre a água que você consome é o primeiro passo para criar um futuro menos apocalíptico.
ÁGUA MORRO ABAIXO
Transposições mal planejadas reduziram drasticamente o volume e a área do Mar de Aral, na Ásia
Mar de Aral - 1984
Mar de Aral - 1991
Mar de Aral - 1998
Mar de Aral - 2005
Mar de Aral - 2012
* Com reportagem de Giovana Moraes Suzin (Dossiê Água, Guia do Estudante Atualidades Vestibular+Enem 2013) e Camila Almeida (Superinteressante, n. 337, setembro de 2014)
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