A segunda morte de JK A Comissão da Verdade da Câmara de São Paulo quer que o País troque a polêmica versão do acidente que matou o ex-presidente por uma implausível hipótese de assassinato político sem comprovação Alan Rodrigues

A segunda morte de JK

A Comissão da Verdade da Câmara de São Paulo quer que o País troque a polêmica versão do acidente que matou o ex-presidente por uma implausível hipótese de assassinato político sem comprovação

Alan Rodrigues
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ACIDENTE OU CONSPIRAÇÃO? 
O carro em que o ex-presidente Juscelino Kubitschek viajava, destruído na via Dutra, em 1976
Guimarães Rosa tinha uma frase impecável para expressar a sua relação cética, mas enxerida, com os mistérios do mundo: “Não sei de nada, mas desconfio de muita coisa”. Uma interpretação linear dessa frase do escritor mineiro parece ter inspirado a Comissão da Verdade da Câmara de Vereadores de São Paulo em sua investigação sobre a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek. Passados 37 anos da tragédia, os vereadores produziram um relatório que se proclama conclusivo: “A Comissão declara o assassínio de Juscelino Kubitschek de Oliveira, vítima de conspiração, complô e atentado político”. O calhamaço montado pelos vereadores paulistanos junta, segundo eles, “90 indícios, provas, testemunhos, controvérsias e questionamentos” para chegar à conclusão de que houve o crime. A leitura da papelada mostra, porém, que ali há realmente quase tudo isso. Exceto “provas”. O que a Comissão Municipal da Verdade está sugerindo é que o País troque a plausível (embora mal documentada) versão de um acidente automobilístico pela inverossímil hipótese de um assassinato político que ainda carece de provas. Embora a remodelação incerta não ofereça nenhuma vantagem para a história brasileira, ela faz barulho por carregar a atração fácil das teorias conspiratórias.

Os historiadores registram que JK viajava de São Paulo para o Rio de Janeiro ao anoitecer do domingo 22 de agosto de 1976. Ia ao encontro da bela Lúcia Pedroso, uma paixão semissecreta que havia 28 anos entrara em sua vida e o ajudava a suportar o “irrespirável” ambiente doméstico, como anotou em seu diário. Ele ia no banco de trás do Opala dirigido por Geraldo Ribeiro, que JK chamava de Platão, seu motorista por mais de três décadas. Na curva do quilômetro 165 da via Dutra, o Opala ultrapassou, indevidamente pela direita, um ônibus da Viação Cometa que acabou tocando-o na traseira esquerda. Desgovernado, o automóvel atravessou a pista e colidiu com uma carreta Scania-Vabis de 12 rodas que trafegava em sentido contrário. O carro foi arrastado por 30 metros, ficou destruído e seus passageiros estavam irreconhecíveis.
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DEFINITIVOS 
Vereadores de São Paulo levantam contradições da 
versão oficial, mas não apresentam provas de crime
 
A Comissão Municipal da Verdade propõe um cenário distinto. Levantando contradições em perícias, testemunhos controversos, elucubrações políticas e doses de pura especulação, joga sobre a fatídica curva da Dutra mais alguns veículos e um magnífico atirador. O carro de JK teria sido perseguido e empurrado por uma Caravan de agentes da ditadura militar brasileira. De dentro da camionete, a 90 quilômetros por hora, o atirador acertou a nuca do motorista Geraldo Ribeiro. Sem controle, o Opala atravessou a pista até ser abalroado pelo caminhão que vinha no sentido oposto. Tudo armado meticulosamente pelo general João Figueiredo, então chefe do Serviço Nacional de Inteligência (SNI). 

O problema básico da nova hipótese da Comissão Municipal da Verdade tem o tamanho de uma carreta Scania carregada de gesso. A Comissão aponta engodos da versão oficial e tentativas de suborno e intimidação por parte dos militares, arrola testemunhos que negam o choque do Opala de JK com o ônibus da Cometa, ouve gente que vislumbrou Geraldo Ribeiro desabado entre o volante e a porta do carro que cruzava as pistas e apresenta até um perito que diz ter visto um buraco de bala no crânio do motorista de JK. Mesmo que tudo isso se confirme, os membros da Comissão não resolveram um detalhe fundamental para que a tese da conspiração criminosa fique em pé: o Scania. Quem planejaria um assassinato que, para dar certo, dependeria de um caminhão que, trafegando desde o Rio de Janeiro, atingisse a curva do quilômetro 165 da Dutra no local preciso e no momento exato em que um Opala desgovernado estivesse atravessando a pista? Quem seria capaz de prever êxito numa empreitada dessas? Sem a carrreta não haveria morte, o carro de JK poderia ter passado direto para o outro lado da Dutra. E se, em vez do Scania, o Opala tivesse batido num Fusca, talvez Juscelino lastimasse apenas uma perna quebrada. Não havia, afinal, um modo mais simples de cometer um assassinato?
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 O aparelho de repressão da ditadura militar brasileira não ficou afamado por expertise em inteligência nem ostenta histórico de sofisticação técnica. Sua rotina se resumia basicamente em moer de pancadas os militantes presos e, com auxílio de equipamentos baratos de tortura, arrancar nomes e endereços de encontros. Ações que se pretenderam mais espetaculares acabaram em tragédia e vexame, como no caso do Rio Centro, quando a bomba destinada a aterrorizar uma plateia de estudantes explodiu no colo do sargento que a carregava. Em inúmeros casos já comprovados a repressão também deixou marca de incompetência na armação de cenários destinados a esconder execuções sumárias de adversários. No caso de JK a Comissão Municipal da Verdade apurou vários indícios de que a documentação da tragédia sofreu manipulações e de que houve algum teatrinho. E é com base nesses achados que vereadores se animaram a seguir adiante para afirmar que a causa da morte de JK foi forjada. Circunstâncias que embasam a conclusão, entretanto, também são historicamente imprecisas.
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Segundo a Comissão, Juscelino Kubitschek, presidente de 1956 a 1961, se articulava para disputar a presidência quando o País retornasse à democracia. E era isso que os militares queriam evitar. Os historiadores mostram, porém, que naquela época Juscelino já não fazia qualquer movimento que pudesse ser chamado de articulação. A ditadura ainda duraria mais nove anos e a última ação política de JK remontaria a 1968, quando ele tentou unir uma frente ampla, destroçada logo depois pelo AI-5. Aos 74 anos, com problemas de saúde, ele achava que não duraria muito. “O construtor de Brasília era um cassado, banido da vida pública havia 12 anos, intimidado por um processo em que a ditadura o acusava de enriquecimento ilícito. Sentia-se exilado em seu próprio País”, relata o jornalista Elio Gaspari em “A Ditadura Encurralada”, um dos quatro livros de sua monumental obra sobre os anos de chumbo. Em 1976, os projetos do ex-presidente eram mais singelos, circunscritos aos 300 alqueires da fazenda em Goiás. Costumava dizer que sua “escala de grandeza” havia se reduzido: “Em lugar de planejar a prosperidade do Brasil, planejo a construção de uma cocheira na fazenda”. O presidente Ernesto Geisel só foi informado sobre a morte de JK um dia depois, na segunda-feira, e reclamou dos assessores. O funeral de JK, oito anos após a edição do AI-5, trouxe o povo de volta às ruas, reunindo três mil pessoas numa passeata pelo Rio e 350 mil nos cortejos em Brasília. “Tanto pedi a Deus que esse homem não morresse no meu governo!”, lastimou Geisel. 

Outra peça-chave do relatório da Comissão Municipal da Verdade deriva de inquirições feitas em 1996. Naquele ano, o ex-secretário particular de Juscelino Kubitschek, Serafim Jardim, questionou judicialmente a versão oficial da morte do antigo amigo e conseguiu a abertura de novas investigações. Por determinação da Justiça, o corpo do motorista do presidente, Geraldo Ribeiro, o Platão, foi exumado e a partir daí foi que surgiu uma das principais suspeitas sobre o caso. Um perito em balística, Alberto Carlos de Minas, que acompanhava a exumação, disse ter visto um furo de bala no crânio de Ribeiro. O perito prestou um novo depoimento à Comissão Municipal da Verdade em novembro. “Quando eles tiraram a caixa ossária eu vi o crânio”, disse Minas. “Vi um provável orifício provocado por entrada ou saída de arma de fogo”. O perito alega que “fecharam imediatamente a caixa e não me deixaram fotografar”. O laudo oficial da exumação acabou apontando a presença no crânio do motorista de um “pequeno fragmento metálico de forma cilindro-cônica, medindo sete milímetros de comprimento e diâmetro médio de dois milímetros”. A Secretaria de Segurança de Minas Gerais concluiu que o metal era “fragmento de prego enferrujado e corroído”. O vereador Gilberto Natalini (PV), presidente da Comissão Municipal da Verdade, se inquieta com essas conclusões: “Prego de caixão vai entrar dentro do crânio de um cadáver? Isso é conto da carochinha. Não sei como o País pode ter acreditado nisso. Vamos pedir uma nova exumação”.
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A ideia da nova exumação desagrada Maria de Lourdes Ribeiro, filha do motorista de JK. Advogada, ela diz que não permitirá a exumação, pois considera “primária” a tese do tiro. “Seria mais confortável para mim se eu comungasse com essa tese”, afirma Maria de Lourdes. “Eu até poderia pedir indenização do governo, mas meu pai me ensinou que a mentira prende e a verdade solta. Meu pai não levou um tiro.” Com a posição firme e exemplar da filha de Platão, é bem provável que o relatório da Comissão Municipal da Verdade não tenha o poder de reescrever a história brasileira como pretendia. Pelo menos até que alguém decida patrocinar uma terceira morte de JK.  
Foto: Marcos Arcoverde/estadão conteúdo
Foto: Gutemberg Gonçalves/Futura Press/Folhapress)

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