PROTAGONISTAS
O então chanceler Antonio Patriota, o embaixador Eduardo Saboia e o senador
boliviano Roger Pinto Molina (da esq. para a dir.) envolveram-se na rumorosa fuga
La Paz, sexta-feira 23 de agosto, 15h. O
sol a pino e a baixa umidade reforçam a sensação térmica da primavera
boliviana e embalam a tradicional sesta local. No horário em que boa
parte dos moradores está cochilando, as ruas livres do tráfego servem
como corredor de fuga a dois veículos 4x4 Nissan Patrol, com placas
diplomáticas. A bordo de um deles, o senador boliviano Roger Pinto
Molina confere o relógio e olha para o alto com um leve sorriso de
satisfação. “Foi a primeira vez que pude ver o sol claramente. E de uma
perspectiva diferente”, lembra, em referência aos 454 dias que passou
asilado numa pequena sala da embaixada do Brasil. Durante esse tempo,
Molina jamais teve direito a um salvo-conduto, documento legal que
poderia ter sido fornecido pelo governo boliviano para garantir sua
saída com tranquilidade em direção ao país no qual decidiu se refugiar.
Planejada ao longo de três meses, com o conhecimento de algumas
autoridades do governo brasileiro e uma mal disfarçada tolerância do
governo do presidente Evo Morales, que enviou vários sinais a Brasília
de que não faria oposição à saída de Molina, desde que não pudesse ser
acusado de proteger um inimigo com 22 processos no currículo, a
“operación libertad” foi cercada de uma série de preparativos, inclusive
medidas de proteção pessoal e monitoramento de riscos. No momento em
que se preparava para entrar no automóvel, Molina contou com o auxílio
de um fuzileiro naval, adido militar na embaixada, para vestir o colete à
prova de balas.
Três dias antes de partir, Roger Molina
falou do plano de fuga à sua filha Denise Pinto Bardales, carinhosamente
chamada pelo pai de “Talita”, sugerindo que ela fosse para Brasileia,
no Acre, onde a mãe, Blanca, vive há um ano com as outras duas filhas do
senador, um genro e quatro netos menores de idade. Num gesto revelador
das relações próximas entre autoridades dos dois países, a família
Molina foi abrigada no Brasil pelo governador Tião Viana (PT/AC), seu
amigo. Além de Talita, sabiam da “operación libertad” o embaixador
Marcelo Biato, o conselheiro Manuel Montenegro e o encarregado de
negócios da embaixada Eduardo Saboia, que assumiu a responsabilidade
pela fase final da operação, que era retirar Molina da Bolívia e
levá-lo, são e salvo, para o Brasil. Há pelo menos um mês, a operação
chegou aos ouvidos de políticos, advogados e empresários que partilham
informações e interesses nas relações entre Brasil e Bolívia. Um plano
alternativo chegou a ser elaborado, na verdade, envolvendo uma operação
triangular. Numa primeira etapa, Molina seria levado de avião para o
Peru. Depois, seria conduzido ao Brasil. Ao verificar que o envolvimento
de um país que nada tinha a ver o caso poderia ampliar as complicações
de um plano já complicado, decidiu-se pela viagem de automóvel entre La
Paz e Corumbá.
Escondidos na neblina Na segunda-feira 19,
num gesto que seus superiores no Itamaraty interpretariam como bisonha
tentativa de despistar sua participação na operação, o embaixador Biato
saiu de férias e coube a Saboia organizar todos os detalhes finais e
fazer a viagem. Na quinta-feira 22, dia anterior à fuga, Molina recebeu a
visita de um médico do Senado boliviano, que produziu um laudo
atestando que ele enfrentava problemas de saúde, inclusive depressão.
Substituindo Biato em sua ausência, naquele mesmo dia, Eduardo Saboia
enviou uma cópia do laudo para o Itamaraty e, no mesmo despacho,
observou que a situação pedia uma intervenção sem demora em auxílio do
senador, afirmação vista como uma senha para o início da “operación
libertad.”
Ao deixar, na sexta-feira 23, a garagem do edifício Multicentro,
complexo empresarial onde funciona a sede diplomática brasileira, o
comboio seguiu em velocidade pela avenida Arce rumo à autopista El Alto,
na saída da capital boliviana. A orientação era fazer meia-volta e
retornar à embaixada ao menor sinal de que autoridades bolivianas
pretendessem criar embaraços ao comboio. Lembrando que chegou a passar
mal no trajeto, Molina conta: “Se eu fosse para um hospital, corria o
risco de ser preso. Então decidimos seguir”. Depois de seis horas de
estrada, o grupo chegou a Cochabamba, na região do Chapare, uma das
principais bases eleitorais do presidente Evo Morales. Ali, milhares de
famílias de agricultores plantam a folha da coca, tradicional
ingrediente da cultura boliviana, que em grande parte é desviada para
servir ao narcotráfico. Em Cochabamba, a avenida Blanco Galindo corta a
cidade. O comboio levou três horas para atravessar a região, sob neblina
espessa. A tensão não deixava ninguém cochilar. “Se fossemos detidos
ali, seria a morte ou algo parecido”, afirma o senador. Em mais de um
contato com o governo brasileiro, quando enviou uma emissária em
audiência com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, o governo de
Evo Morales já havia deixado claro que gostaria de ver Roger Molina fora
do País, desde que jamais pudesse ser acusado por seus próprios
eleitores de proteger um político acusado de corrupção pela Justiça. “É
loucura!”, reagiu Dilma ao ser consultada sobre a operação, deixando
claro que o Brasil não poderia aceitar uma proposta que não tinha
garantia contra riscos, inclusive possíveis ameaças à vida de Molina.
Convencida de que o governo brasileiro fizera sua parte, ao garantir
asilo para o senador boliviano, Dilma esperava que, incomodado com o
desgaste que Molina causava a Morales, este tomasse a única medida
cabível, que era dar o salvo-conduto.
Fugitivos de fraldas Pano de fundo daquela
viagem dramática, as relações entre Dilma e Evo Morales atingiram um
momento especial quando ambos se encontraram durante uma viagem à
África. Evo pediu uma “bilateral” à presidenta brasileira e aproveitou o
encontro para denunciar que o senador estava tendo um comportamento
inapropriado, chegando a fazer reuniões políticas. Em seguida, Dilma
determinou ao chanceler Antonio Patriota que verificasse as queixas de
Morales, pedindo ao ministro que se encarregasse pessoalmente de
resolver o caso com as autoridades bolivianas. Quando Patriota lhe
disse que pretendia escolher um responsável para tocar a missão, Dilma
reagiu de forma dura, conforme relatou um assessor palaciano: “Você deve
cuidar de tudo pessoalmente”.
SUSTO NA FRONTEIRA
A polícia boliviana parou a comitiva e solicitou documentos. Atemorizado,
o senador Roger Pinto pensou em sair correndo a pé do carro
Às 4h30 da madrugada do sábado 24, já em Santa Cruz de La Sierra, o
comboio fez uma parada técnica para “esticar as pernas”. Antes e depois,
o combinado era seguir caminho de qualquer maneira. Para não perder
tempo com refeições, levaram-se garrafas de água mineral, barras de
cereais, frutas e biscoitos. Para não irem ao banheiro, usavam fraldas
geriátricas. Antes do amanhecer, já estavam na estrada rumo a Puerto
Suarez. Percorreram mais 660 quilômetros pela Rodovia 4, cruzando San
José de Iquitos e outros três pequenos municípios. Na rota de saída do
território boliviano, passaram por cerca de 12 postos de controle,
chamados “trancas”. A cada parada, o motorista no veículo da frente
identificava o comboio diplomático: “Estamos em missão diplomática,
deixem-nos passar”. Os viajantes jamais foram submetidos a qualquer
controle que, mesmo em operação de rotina, poderia detectar alguma falha
nos documentos portados pelo senador, político conhecido no país
inteiro.
TERRITÓRIO INIMIGO
O momento mais difícil e perigoso da fuga ocorreu quando a comitiva passou
por Chapare (foto), região cocaleira dominada por aliados de Evo Morales
Perto das 12h30, o grupo chegou a Puerto Suarez, fronteira com
Corumbá. A luz amarela intermitente no painel do veículo alertava para o
baixíssimo nível de combustível. Foi então que Saboia, católico
praticante, abriu a “Bíblia” em Salmos e rezou baixo com Molina,
evangélico. A tensão aumentou ao pararem no último posto policial na
fronteira boliviana. Embora Saboia tivesse plena ciência do interesse de
Morales em permitir que Molina deixasse o país, havia o temor de um
imprevisto. “Se o primeiro carro fosse bloqueado, teríamos que jogar o
nosso no acostamento e passar. Ou eu desceria e sairia correndo para
cruzar a fronteira a pé”, revelou o senador boliviano. Após o trajeto de
22 horas, Molina disse, como um desabafo: “Senti um conforto emocional
muito grande, após tanta pressão durante 22 horas e meia e 1,6 mil
quilômetros. Foram momentos dramáticos e emocionantes”, desabafou
Molina.
Cercados no hotel Minutos depois, já no Brasil, eles tiveram que
fazer outra parada, desta vez no posto da Polícia Federal. Estavam em
Corumbá. Dois policiais fardados pediram que Saboia e Molina aguardassem
no interior do veículo, enquanto eles faziam algumas ligações. Cerca de
40 minutos depois, cinco policiais à paisana chegaram ao local.
Cumprimentaram a todos e disseram ter ordens superiores para fazer a
escolta do grupo. Apreensivos e bastante cansados da tensão da viagem,
Molina e seus acompanhantes receberam um tratamento regular, diante das
circunstâncias. Foram levados ao hotel Santa Mônica. Ainda no carro,
Molina ligou para o senador Ricardo Ferraço (PMDB/ES), presidente da
Comissão de Relações Exteriores, que almoçava despreocupadamente com a
esposa em sua casa, em Vitória (ES). Ao atender, Ferraço ouviu Molina
gritar do outro lado da linha. “Estou no Brasil! Necessito de ajuda para
chegar a Brasília.” Ferraço primeiro tentou contato com o presidente do
Senado, o peemedebista Renan Calheiros (AL). A ideia era dar um caráter
mais oficial à acolhida de Roger Molina. “Vai que ele oferece um avião
da FAB? Era uma questão humanitária”, diz. Sem conseguir falar com
Renan, ele procurou empresários e, duas horas depois, conseguiu um avião
para levar o senador até a Capital Federal.
Às 14 horas do sábado 24, o senador Molina adentrou ao hotel com
Saboia e o resto do comboio. Foi direto para seus aposentos, no quarto
andar. Os próprios policiais fizeram o check-in. Numa medida para evitar
a presença de desconhecidos e monitorar o que se passava no quarto do
senador, bloquearam todos os apartamentos daquele andar. O boliviano
tomou um banho, trocou de roupa e tirou uma foto com celular. Anexou a
imagem a um SMS que enviou para a filha. “Cheguei em Corumbá. Avise a
todos que estou bem!” Funcionários do hotel ouvidos por ISTOÉ afirmam
que o trânsito de autoridades na fronteira é comum. Por isso não
suspeitaram da missão até o fim da tarde, quando “um ministro” ligou
querendo falar com Saboia.
O prefeito de Corumbá, Paulo Duarte (PT), foi acionado no início da
noite. O primeiro contato partiu do Itamaraty, o segundo de uma
autoridade que ele prefere proteger. “Pediram que eu descobrisse se
alguém com o nome de Roger Pinto Molina havia entrado em algum hospital
da cidade”, relata. Funcionários da Secretaria de Saúde do município
foram tirados de casa para fazer a varredura. Como não acharam ninguém,
tentaram os hotéis. O Santa Mônica foi a primeira opção. Ao comunicar
que havia encontrado Molina, Duarte foi orientado a achar um médico de
confiança para examiná-lo. O médico encontrou o senador boliviano com um
quadro agudo de desidratação e taquicardia. Ele foi medicado e
orientado a repousar.
Às 20h, Ferraço desembarcou no aeroporto local. Seguiram-se, então,
novos momentos de tensão. Pelo que ficara combinado, era nesse horário
que ele deveria resgatar Molina. Não encontrou ninguém e ligou para o
senador. Tentou também o diplomata Eduardo Saboia, mas ambos estavam
incomunicáveis. “Foram horas de preocupação. Não sabia o que ia
acontecer”, afirmou Ferraço. Uma hora depois, um agente da PF chegou ao
aeroporto e avisou ao senador que ia buscar Molina. Às 22h, os agentes
da PF montaram guarda na recepção do hotel, para impedir movimentos de
entrada e saída, ação que ficou registrada nas câmeras de circuito
interno de tevê do hotel.
Conselhos do governador No aeroporto,
Saboia e Roger Molina se despediram dos policiais e embarcaram. “Estou
aliviado em estarmos no Brasil. Só estou preocupado com a minha família,
que ficou na Bolívia”, afirmou um emocionado Saboia a Ferraço. A esposa
de Saboia também é diplomata, lotada em Santa Cruz, e estava em casa
com o filho. No trajeto, os dois contaram a Ferraço que o ministro da
Justiça, José Eduardo Cardozo, havia telefonado para o ministro da
Saúde, Alexandre Padilha, pedindo que um médico credenciado pelo Sistema
Único de Saúde (SUS) fosse até o hotel atender Molina. Era 1h20 quando o
avião desembarcou em Brasília. O senador boliviano pediu, então, para
que o carro oficial do senador Ferraço o levasse para a casa do advogado
Fernando Tibúrcio, que possui vários contatos com a oposição boliviana.
É amigo, inclusive, do empresário Tito Quiroga, que já foi candidato a
presidente e é adversário de Evo Morales. Um pouco depois, Molina deu um
longo depoimento ao documentarista Dado Galvão, que se aproximou de
integrantes da oposição ao governo Dilma durante a patrulha petista
contra a dissidente cubana Yoani Sánchez.
Ao descobrir que diplomatas brasileiros organizaram um plano que ela
havia condenado de forma clara e definitiva, a presidenta demitiu
Antonio Patriota de um cargo que ele conseguia conservar com
dificuldades imensas, apesar da vitória inédita representada pela
conquista da direção geral da Organização Mundial de Comércio por um
candidato brasileiro. Submetido a uma investigação para apurar suas
responsabilidades, o próprio Saboia foi removido de seu posto em La Paz
e, em qualquer caso, só poderia contar com oportunidades de promoção na
carreira em nova combinação política. O destino do senador Roger Molina
parece encaminhado para que ele permaneça no País, desde que tenha
disposição para manter uma postura discreta, longe de manifestações
políticas, comportamento que se costuma pedir a quem pretende assumir a
condição de refugiado. Foi por essa razão que, após conselhos do senador
Jorge Vianna (PT-AC), ele cancelou depoimentos públicos nos quais seria
chamado a criticar Evo Morales e, por tabela, fazer referências
negativas à diplomacia do governo Dilma.
Fotos: André Ribeiro; Marcos Boaventura/Folhapress; Paulo Yuji Takarada; Joel Rodrigues/FRAME
Fotos: Michel Filho/Agência O Globo; Leon Neal/afp photo
Fotos: Martín Alipaz/EFE; Pedro santana/afp; Alan marques/folhapress
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