Por que a Venezuela chora por Chávez-O SIQUEIRA DA AMÉRICA

Por que a Venezuela chora por Chávez

Hábil em cultivar a imagem de messias, o caudilho deixa um legado dúbio: tirou milhões de venezuelanos da pobreza, mas destruiu a economia do país. Até que ponto são merecidas as lágrimas vertidas por seu povo?

Por Amauri Segalla
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DOR 
Venezuelana verte lágrimas sinceras diante do Hospital Militar de Caracas
Uma mulher chamada Valentina descreve assim a hora trágica. “Estávamos em casa quando soubemos da morte pelo rádio. Começamos a chorar porque o homem mais importante do mundo tinha morrido.” Dalila não vai esquecer desse dia: “As aulas foram suspensas e os alunos liberados para ir embora.” Vitor explica o que sentiu: “A vida parecia ter parado.” Valentina, Dalila e Vitor poderiam ser alguns dos milhares de venezuelanos que na semana passada se dissolviam em lágrimas pela morte do presidente Hugo Chávez, mas eles são sobreviventes da antiga União Soviética. Os três deram entrevistas recentes ao jornal “Gazeta Russa”, que publicou lembranças de pessoas que viram de perto o desaparecimento do tirano Josef Stálin, há exatos 60 anos. Por uma dessas estranhas coincidências, Chávez e Stálin morreram no mesmo dia – 5 de março – e despertaram em seu povo o mesmo sentimento de desespero. Na Venezuela, as aulas foram suspensas e havia luto por todo o lugar. A vida, de certa forma, parou. “Se Chávez morreu, deveríamos todos morrer juntos”, estava escrito em um cartaz carregado por um venezuelano que acompanhava, na quarta-feira 6, o cortejo fúnebre. “Chávez é nosso pai amado, nosso mártir, nosso Deus”, lia-se em outro pôster. “Chávez, minha alma partiu com a sua”, dizia um terceiro. Messias dos oprimidos ou o próprio demônio em pessoa? Revolucionário ou ditador? Maluco ou o último anti-imperialista do planeta? Dinossauro da política ou socialista do século 21? Palhaço ou gênio? Mostro ou santo? Por mais que Chávez desperte ódios e paixões, a verdade indestrutível é que o povo venezuelano chorou lágrimas sentidas por ele. Muito diferente é saber se ele realmente as merece.
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Os pobres da Venezuela têm motivos para prantear Chávez, morto aos 58 anos. Até os críticos mais severos reconhecem a eficiência de sua política de combate às desigualdades sociais. Nos 14 anos em que esteve no poder, Chávez voltou os olhos para os marginalizados, tendo sido muito provavelmente o primeiro líder do país a centrar seu governo na defesa dos excluídos. Com o dinheiro que jorrava das reservas de petróleo, o presidente construiu escolas, ofereceu alimentos subsidiados para os miseráveis, abriu linhas de crédito para a compra de casas populares, trouxe médicos cubanos para atender gratuitamente os moradores das favelas (o efeito dessa última ação foi a queda de 32% da mortalidade infantil desde 1999). Antes de Chávez, a Venezuela investia 8% do Produto Interno Bruto em ações sociais. Com ele, o número subiu para 14%. Em 1999, um quarto dos venezuelanos vivia na pobreza extrema, índice comparável ao de nações africanas desvalidas. Hoje, o percentual é de 7% e o ritmo de pessoas que deixa a linha da miséria indica que o número tende a cair mais. Ao morrer, Chávez deixou um legado notável na área social e isso explica, em grande medida, por que ele é idotrado por venezuelanos que sempre se sentiram relegados. Isso explica, também, o choro verdadeiro dos pobres, temerosos de que deixem de ser, nos próximos governos, uma massa digna de ser ouvida e respeitada.
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Mas o foco total nos oprimidos gerou um efeito indesejado. Chávez esqueceu que governava para todos. Seu discurso feroz contra os ricos fez com que, na década passada, mais de 300 mil venezuelanos abastados deixassem o país para viver principalmente nos Estados Unidos. Em vez de investir na economia venezuelana, os debandados despejaram os fartos recursos no exterior. O efeito disso foi ruim. Além das perdas financeiras sofridas pela Venezuela, Chávez ampliou as divisões da sociedade. “Nunca houve no país uma polarização tão grande”, diz o cientista político Carlos Romero, da Universidade da Venezuela. Funciona mais ou menos assim: se você é pobre, está com Chávez, apóia a revolução bolivariana iniciada por ele em 1999 (revolução esta que era inspirada no venezuelano Simón Bolívar, mártir da independência de diversas nações da América do Sul) e tem como inimigo o demoníaco Estados Unidos. Se você é rico, está contra a Venezuela, é vendido aos imperialistas e merece, na cabeça dos radicais, sofrer todos os males possíveis e imagináveis. O problema é que nenhuma sociedade resiste a essa visão maniqueísta. Polarizações tão explícitas levam ao ódio mútuo e à impossibilidade de convivência. Levam, acima de tudo, à intolerância diante de opiniões divergentes. Chávez era refratário ao debate aberto e andou cassando a licença de emissoras de tevê e perseguindo jornais. Ele não assimilou a lição do ex-presidente brasileiro Lula: é preciso afagar, de um lado, os excluídos, mas é necessário também ser próximo de empresários, banqueiros e investidores. Só assim um país anda. Só assim a economia cresce.
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Para o ex-ministro da Fazenda e atual diretor da Faculdade de Economia da Faap, Rubens Ricúpero, na mesma medida em que acertou a mão nas ações sociais, Chávez errou na condição da política econômica. “A Venezuela continua a ser dependente demais do petróleo, sua indústria não é competitiva e faltam investimentos em infraestrutura”, diz Ricúpero. Em outras palavras: Chávez foi um desastre para as finanças do país. A dinheirama do petróleo, que parecia fácil e segura, foi desperdiçada sobretudo pela corrupção e pela disseminação do chavismo mundo afora. Apenas com a Cuba de Fidel Castro Chávez gastou, entre 2005 e 2010, US$ 34 bilhões. Outros incontáveis bilhões foram cedidos a países como Equador e Bolívia – em gratidão pela generosidade, essas duas nações também expulsaram embaixadores americanos, no que foram aplaudidas pelo caudilho venezuelano. Seu legado econômico é mesmo uma tragédia. A inflação está acima de 20% ao ano, uma das mais altas do mundo, e o bolívar, a moeda venezuelana, evaporou durante a gestão Chávez, se desvalorizando 992%. 
Em sua sanha revolucionária, Chávez promoveu uma onda de estatização. Expropriou empresas de diversos setores e orgulhou-se de botar para correr empresários que defendiam a iniciativa privada. Com Chávez, o governo venezuelano passou a controlar 80% do setor de telefonia fixa, 40% do bancário e 35% do varejo de alimentos. O resultado disso os brasileiros conhecem bem pelas experiências vividas no passado recente: serviços de péssima qualidade e que muitas vezes funcionavam apenas para abastecer os bolsos de pessoas ligadas ao goveno. Números oficiais revelam como o caudilho foi irresponsável com o erário. Em seus governos, os gastos públicos passaram a responder por impressionantes 52% do PIB. Antes dele, o índice era de 25%. Nem na área em que o país deveria demonstrar expertise, como na petrolífera, as coisas saíram bem. Graças à corrupção e à falta de investimentos em tecnologia, os venezuelanos reduziram a produção diária de petróleo de 3,1 milhões de barris em 1999 para 2,4 milhões atualmente. A queda é absurda, considerando-se que a Venezuela detém as maiores reservas do planeta. Na Arábia Saudita, concorrente dos venezuelanos nesse mercado, a extração diária cresceu 40% no mesmo período. Na conta de Chávez deve ser colocado também o legado da violência. Na era do caudilho, a capital Caracas passou a ser uma das cidades mais perigosas do mundo. São 67 homicídios para cada 100 mil habitantes, quatro vezes mais do que o número registrado uma década atrás. No Brasil, há 20,4 homícidios para cada 100 mil pessoas. Detalhe: os brasileiros estão entre os campeões mundiais de indicadores de violência.
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Mesmo com dados econômicos desastrosos, Chávez conseguiu a proeza de ser reeleito duas vezes (parece injusto, portanto, chamá-lo de ditador). O que explica o sucesso das urnas e a idolatria revelada pelo choro sentido dos venezuelanos? Chávez foi mestre na arte de cultivar uma imagem positiva. Nesse aspecto, ele seguiu ao pé da letra as lições de Stálin e de diversos outros tiranos (Mao Tsé-tung, na China, Adolf Hitler, na Alemanha, e Nicolae Ceausescu, na Romênia, para citar alguns exemplos). Não importa quão cruel você seja, o importante é convencer o povo de suas virtudes. É o chamado culto à personalidade. Chávez esforçou-se ao máximo para propagar a fama de líder desapegado (ele gostava de aparecer, de surpresa, numa casa humilde e jantar, diante de câmeras de tevê, com seus moradores). Uma vez, interrompeu uma entrevista ao vivo para atender uma ligação telefônica da mãe e discutir com ela afazeres domésticos. Em outra ocasião, criticou mulheres que colocam silicose nos seios, alegando que o dinheiro para a cirurgia poderia ser destinado para ajudar os pobres.
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A televisão foi a ferramenta preferida para construir a imagem de líder destemido e amigo dos pobres. Nos 14 anos em que se manteve à frente do governo venezuelano, ficou 3.500 horas no ar (o presidente tinha um programa semanal) e chegou a discursar durante nove horas seguidas (lição aprendida com o mestre Fidel Castro, o campeão dos discursos longos e enfadonhos). A exibição maciça da imagem foi um recurso usado por Mao, que mandava seus soldados baterem na porta das casas dos chineses para averiguar se eles tinham retrato do grande líder pendurado nas paredes, e do próprio Stalin, que adorava espalhar fotografias de seu belo bigode. Por mais que o critiquem, Chávez era, sem dúvida, um ser midiático. Bem-humorado, tinha habilidade natural para fazer tiradas rápidas (num discurso na ONU, disse que o púlpito cheirava a enxofre, pois o americano George W. Bush havia discursado no mesmo lugar no dia anterior), e todos que o conheceram de perto afirmam que era um sedutor na acepção mais completa da palavra: em suma, parecia difícil não simpatizar com ele. 
Daí se conclui que o governo venezuelano se baseava principalmente na figura de seu líder e não no conjunto de ideias e nas correntes que ele representava. As pessoas adoram Chávez muito mais do que a tal revolução que ele propagava. No governo Chávez, todos os outros integrantes eram irrelevantes. Em 14 anos, ele trocou ministros mais de 200 vezes e ninguém conseguiu se apropriar de seu patrimônio político. Isso, como se sabe, é um perigo, e a história está aí para revelar como o culto à personalidade é danoso para um país. A Venezuela chora por Chávez por sua energia carismática, capaz de magnetizar quase todos ao seu redor, e também porque ele colocou seu país no mapa geopolítico global. Bem ou mal, com Chávez todo mundo passou a falar da Venezuela. O discurso contra os Estados Unidos atraiu as viúvas da velha esquerda latino-americana e ressuscitou antigos fantasmas. Palavras como “burguesia”, “revolução” e “imperialismo”, que pareciam enterradas no passado recente, voltaram com força na boca do caudilho. Quem vai ocupar esse espaço? Não se veem candidatos potenciais na América do Sul, e talvez no mundo. “A América Latina vai entrar em uma nova etapa”, diz Maria Teresa Romero, professora da Escola de Estudos Internacionais da Universidade Central da Venezuela. “Sem Chávez, as lideranças populistas perdem seu brilhantismo.”
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Populismo, marxismo, autoritarismo, socialismo, antiamericanismo, totalitarismo e vários outros ismos marcaram os governos Chávez, mas mesmo assim o povo continua chorando sua perda – e talvez faça isso por um bom tempo. Parte desse desespero pode ser explicada pela incerteza do que vem pela frente. Os venezuelanos sabem que Nicolás Maduro, o vice-presidente que assumiu interinamente o poder até que novas eleições sejam realizadas (e desse modo fere a Constituição, pois o cargo, pelas regras do país, deveria ser ocupado pelo presidente da Assembleia até sair o resultado das urnas), não parece ser uma figura nacional capaz de catalizar a admiração dos venezuelanos, nem de realizar as reformas econômicas necessárias. Seu principal opositor, Henrique Capriles, carrega um fardo pesado. Como todos os outros que tentaram derrotar Chávez nas urnas, e foram derrotados por ele, Capriles jamais se distanciou da elite que, historicamente, levou o país a ser um dos mais pobres e desiguais das Américas. Foi essa mesma elite que, antes de Chávez, criou castas de milionários e relegou milhões de venezuelanos à miséria. Com o desaparecimento de Chávez, o futuro permanece uma incógnita para ricos e pobres. Enquanto isso, a Venezuela chora por seu caudilho.
Foto: Leo RAMIREZ/AFP photo
Fotos: handout/reuters; ho/afp photo; JORGE DAN LOPEZ/reuters
Fotos: Andrew Winning; ho/afp photo; TIMOTHY A. CLARY; efe

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