Réquiem para um jornal
Réquiem para um jornal
O fim do jornal que mostrou a notícia além das palavras
Como as famílias descritas pelo romancista Liev Tolstói, os jornais infelizes são infelizes cada um a sua maneira. Convencidos de que alguma coisa não ia bem com a saúde do Jornal da Tarde, um dos mais belos e inovadores diários que a imprensa brasileira já produziu, de uns tempos para cá um grupo de antigos repórteres, fotógrafos e editores passou a encontrar-se todos os anos numa churrascaria rodízio da Zona Oeste de São Paulo. Como é inevitável nessas situações, todos queriam falar (bem) dos velhos tempos, falar (mal) dos novos e reunir forças para, juntos, enfrentar o pior – a notícia de falecimento. Ela foi anunciada na quinta-feira passada, quando o grupo Estado de S. Paulo anunciou o fim do JT, 46 anos após seu lançamento.
Inaugurado em 1966, com um furo na manchete (“Pelé casa no Carnaval”), o Jornal da Tardeajudou a dar dignidade à vida cotidiana e a romper a sisudez dos grandes jornais. Procurou notícias capazes de mostrar as mudanças formidáveis que a década de 1960 representou na história de todo mundo. Foi o primeiro jornal a ter uma coluna fixa de TV, o único a cobrir o primeiro casamento de Roberto Carlos – na Bolívia, porque a noiva era desquitada – e um destaque ao saber interpretar o sentimento do homem da rua.
Chegou à perfeição em 1982, quando produziu uma primeira página histórica – o choro de um menino brasileiro no Estádio Sarriá, em Barcelona, após a vitória da Itália que tirou a Seleção Brasileira da Copa do Mundo. Caminhando entre a torcida derrotada, o já veterano fotógrafo Reginaldo Manente capturou aquela imagem, emocionante em seu rea-lismo triste. Em São Paulo, o olho do editor de Esportes grudou na foto do anônimo José Carlos – sabe-se hoje que é advogado e vive em Santa Catarina – e dali saiu a grande ideia. Pensava-se, no começo, em ilustrar o caderno de Esportes com aquele retrato imenso, que valia por mil palavras. O redator-chefe, Fernando Mitre, passou por perto e levou a ideia para a primeira página. “Mas vamos dar a foto sem palavras, só com a imagem”, disse o editor Sandro Vaia, que participava do plantão. Resumindo um pouco do espírito da coisa naqueles tempos, Sandro acrescentou: “Vamos derrubar a ditadura da manchete”.
Na luta contra a ditadura da manchete, as imagens sempre tiveram importância. Na campanha por eleições diretas para presidente, em 1984, a primeira página do jornal extrapolou o espaço destinado a ela – a foto eloquente do comício do Anhagabaú se espraiava para a última página do primeiro caderno. Durante a Guerra das Malvinas, a página dupla central trazia diariamente um mapa com uma reprodução gigantesca das duas ilhas, mostrando as últimas novidades do teatro de batalha. Nos anos 1970, quando era governador do Estado, Paulo Maluf estabeleceu um prazo para tirar petróleo do solo paulista. Na imortal caricatura da dupla Gepp e Maia (chargistas cujo traço se tornou uma marca do JT), o nariz dele crescia a cada dia, até ficar do tamanho de toda a capa do jornal, com galhos e ramificações que superavam qualquer Pinóquio.
O Jornal da Tarde era literário sem nunca ter sido pedante. Queria ser criativo sem perder a eficácia para atrair o leitor. A busca da beleza era um valor fundamental. Não bastava escrever correto. Era preciso escrever bem – e o melhor exemplo disso era um suplemento semanal chamado “Seu caderno de programas e leituras”. O editor-chefe que deu rosto e personalidade ao jornal, Murilo Felisberto, chegou a dar aumento de salário quando um redator lhe trouxe um bom título. Era capaz de declamar em voz alta uma frase bem lapidada. Na redação, a vida pulsava, abria caminhos, traçou destinos inesperados. Miguel Jorge, depois ministro do Desenvolvimento no governo Lula, foi editor de Local, seção que incluía a cobertura de polícia. Com uma imensa cabeleira negra nos ombros e um sorriso que derretia todos os marmanjos, a repórter Claudia Batista era apenas a primeira encarnação da monja Coen, hoje uma das principais líderes budistas do país.
Um entre tantos escritores – Fernando Morais, Ivan Angelo, Regina Echeverria, que também fizeram carreira por ali –, Humberto Werneck foi correspondente em Paris. Até hoje sabe, de cabeça, o trecho que uma redatora, Valéria Wally, escreveu no primeiro parágrafo para uma reportagem sobre perfume: “Milhares de flores morrem para que alguém se volte quando você passa. Pense nisso quando for comprar um perfume – não lamente o preço”.
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