Brincando de independência
Brincando de independência
Catalunha e Escócia querem se tornar Estados soberanos. Numa Europa que pede mais integração em tempos de crise, isso não é bom para ninguém
Uma leitura obrigatória para qualquer líder de movimento separatista é a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776. Sua introdução diz que qualquer povo determinado a desfazer os laços políticos que o unem a outro precisa deixar claras as causas que o impelem à separação. Os movimentos pela independência da Escócia e da Catalunha não estão cumprindo bem esse requisito para se separar de seus governos centrais – Reino Unido eEspanha. Para sair da crise econômica, a Europa precisa aprofundar a integração. Os governantes escoceses e catalães caminham em sentido contrário. Se existe momento certo para um Estado lutar por soberania, certamente este não é o mais adequado. Há mesmo necessidade de independência? As contradições das próprias lideranças de cada movimento levam a crer que não.
O processo está menos avançado na Catalunha que na Escócia, onde haverá um referendo no fim de 2014 para decidir pela separação ou não do Reino Unido. A razão mais latente para o afloramento do separatismo é a crise. Seus defensores propalam que a independência pode melhorar as economias locais pelo simples fato de não ser mais preciso compartilhar as dificuldades dos Estados a que estão ligados. Como a crise é pior na Espanha, com quase 25% de taxa de desemprego, esse argumento é mais explícito na Catalunha, a mais próspera e populosa das 17 Comunidades Autônomas do país. Com 7,2 milhões de habitantes (15% da população espanhola), a região responde por 19% do PIB nacional. O governo local diz não receber de volta, em gastos do Estado espanhol, o mesmo que contribui em impostos para Madri. A sensação de injustiça entre os catalães aumentou com a recusa do governo espanhol em lhes dar o direito de arrecadar tributos e aplicá-los da forma que acharem melhor.
A Catalunha tem uma dívida pública de US$ 54 bilhões e pediu um socorro de € 5 bilhões (US$ 6,5 bilhões) ao governo central. O cientista político Julián Santamaría, da Universidade Complutense de Madri, diz que a crise fez os nacionalistas catalães acentuar a “linha da vitimização”. “A lógica deles é responsabilizar o resto da Espanha por todas as suas carências e problemas”, afirma. Tornar-se independente, porém, seria um tiro no pé para a economia catalã, que destina 80% de suas exportações ao restante da Espanha. Implicaria ir para o fim da fila da União Europeia (UE). Qualquer território que se separe de um Estado membro precisaria seguir todos os trâmites para ser readmitido. Fora da UE, a Catalunha perderia as vantagens comerciais que gozam seus membros. O mesmo valeria para a Escócia, que aposta nas reservas de petróleo do Mar do Norte para se sustentar sozinha.
Os separatistas recorrem a singularidades históricas, além da economia, para sustentar suas causas. Antes da união no século XVIII, a Escócia lutou por séculos contra a Inglaterra para defender sua soberania. Um de seus símbolos é William Wallace, herói da Primeira Guerra de Independência (1226-1328) popularizado por Mel Gibson no filme Coração valente. A última guerra entre os dois povos terminou em 1745, e o Reino Unido deixou de coibir as manifestações culturais escocesas. Embora lá se fale também o escocês e o gaélico, o inglês é a língua dominante. O nacionalismo escocês reemergiu durante o governo da premiê britânica Margaret Thatcher (1979-1990), cujas políticas eram impopulares na Escócia. “Essa união é um casamento de conveniência – enquanto trouxe prosperidade, houve fusão do patriotismo escocês com o inglês”, diz Michael Rosie, da Universidade de Edimburgo.
No poder desde 2007, o Partido Nacionalista Escocês iniciou uma campanha pró-independência. Seu líder, Alex Salmond, alcançou um triunfo histórico no dia 15. Ele assinou um acordo com o premiê britânico, David Cameron, segundo o qual o Legislativo da Escócia deliberará sobre o referendo, sob uma condição: haverá apenas uma pergunta, cuja resposta tem de ser “sim” ou “não”. Salmond queria incluir uma segunda pergunta sobre o aumento da autonomia do Parlamento em relação a Londres. Seria uma forma de tentar driblar a rejeição à separação. Segundo uma pesquisa realizada após a assinatura do acordo com Cameron, 58% da população prefere manter a união com a Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte – só 30% desejam a independência.
O apelo cultural toca mais fundo na Catalunha. A língua, a bandeira e os símbolos locais foram proibidos durante a ditadura de Francisco Franco (1939-1975). Ainda há um ressentimento grande com Madri. A tensão política se estendeu até o futebol – no último clássico Barcelona e Real Madrid, a torcida barcelonista fez um imenso painel humano com as cores da bandeira da Catalunha. A resposta madrilenha ocorreu no Dia da His-panidade, em 12 de outubro. Milhares marcharam contra o separatismo. A situação é inversa à da Escócia: a maioria da população quer a independência, mas a Espanha se recusa a negociar um referendo. Mas há dúvidas sobre a real disposição da elite catalã em buscar a separação. O mesmo Barcelona que inflamou seus torcedores diz que não sairá da Liga Espanhola para jogar um torneio catalão – o prejuízo seria imenso. O partido governista de centro-direita, Convergência e União, nunca foi grande entusiasta da independência, mas se viu pressionado pela esquerda a encampar o movimento. “A lógica do independentismo catalão não está clara”, diz Javier Barraycoa, da Universidade Abat Oliba, de Barcelona. Como a Declaração de Independência americana ensinou, assim um movimento separatista não vai adiante.
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