A imprensa que estupra - parte 1


ELIANE BRUM - 28/05/2012 10h07 - Atualizado em 29/05/2012 08h09
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A imprensa que estupra - parte 1

A repórter que condenou e humilhou um suspeito não é exceção. O episódio mostra a conivência histórica entre parte da imprensa, da polícia e do sistema penitenciário na violação dos direitos de presos pobres (ou presos e pobres)

ELIANE BRUM
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Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista (Foto: ÉPOCA)
– Não estuprou, mas queria estuprar! 

A frase foi dita pela repórter Mirella Cunha, no programa “Brasil Urgente”, da Band da Bahia, a um jovem de 18 anos, preso em uma delegacia desde 31 de março. Algemado, ele diz que arrancou o celular e a corrente de ouro de uma mulher, mas repete que não a estuprou. Na reportagem, a jornalista o chama de “estuprador”. Pergunta se a marca que ele tem no rosto é resultado de um tiro. Ele responde que foi espancado. A repórter não estranha que um homem detido, sob responsabilidade do Estado, tenha marcas de tortura. O suspeito diz que fará todos os exames necessários para que seja provado que ele não estuprou a mulher. Ele não sabe o nome do exame, não sabe o que é “corpo de delito” e pronuncia uma palavra inexistente. Ela debocha e repete a pergunta para expô-lo ao ridículo. Ele então pronuncia uma palavra semelhante à “próstata”. A jornalista o faz repetir várias vezes o nome do exame para que ela e os telespectadores possam rir. Depois, pergunta se ele gosta de fazer exame de próstata. No estúdio, o apresentador Uziel Bueno diz: “Tá chorando? Você não fez o exame de próstata. Senão, meu irmão, você ia chorar. É metido a estuprador, é? É metido a estuprador? É o seguinte. Nas horas vagas eu sou urologista...”.  
A chamada da reportagem era: “Chororô na delegacia: acusado de estupro alega inocência”. A certa altura, a jornalista olha para a câmera e diz ao apresentador, rindo:
– Depois, Uziel, você não quer que o vídeo vá pro YouTube...
Ela tinha razão: o vídeo foi postado no YouTube. A versão mais curta dele já foi vista por quase 1 milhão de pessoas. Aqui neste link, se quiser, você pode assistir a uma versão um pouco mais longa, de quase cinco minutos.
O vídeo foi divulgado nas redes sociais, na semana passada, com grande repercussão e forte pressão por providências. Um grupo de jornalistas fez uma carta aberta: “A reportagem de Mirella Cunha, no interior da 12ª Delegacia de Itapoã, e os comentários do apresentador Uziel Bueno, no estúdio da Band, afrontam o artigo 5º da Constituição Federal: ‘É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral’. E não faz mal reafirmar que a República Federativa do Brasil tem entre seus fundamentos ‘a dignidade da pessoa humana’. Apesar do clima de barbárie num conjunto apodrecido de programas policialescos, na Bahia e no Brasil, os direitos constitucionais são aplicáveis, inclusive aos suspeitos de crimes tipificados pelo Código Penal”.
E, mais adiante: “É importante ressaltar que a responsabilidade dos abusos não é apenas dos repórteres, mas também dos produtores do programa, da direção da emissora e de seus anunciantes – e nesta última categoria se encontra o governo do Estado que, desta maneira, se torna patrocinador das arbitrariedades praticadas nestes programas”. Em 23/5, o Ministério Público Federal abriu representação contra a jornalista. Em nota, a Band afirmou que tomaria “todas as medidas disciplinares necessárias” e que “a postura da repórter fere o código de ética do jornalismo da emissora”.
Em visita ao suspeito, a Defensoria Pública assim o descreveu: “É réu primário, vive nas ruas desde criança, apesar de ter residência em Cajazeiras 11. Tem seis irmãos, é analfabeto e já vendeu doces e balas dentro de ônibus. Ao ser questionado sobre como se sentiu durante a entrevista, ele diz: ‘Eu me senti humilhado, porque ela ficou rindo de mim o tempo todo. Eu chorei porque sabia que eu iria pagar por algo que não fiz, e que minha mãe, meus parentes e amigos iriam me ver na TV como estuprador, e eu sou inocente’”.
A reportagem é um exemplo de mau jornalismo do começo ao fim. E, para completar, ainda presta um desserviço à saúde pública, ao reforçar todos os clichês e preconceitos relacionados ao exame de próstata. Por causa dessa mistura de ignorância e machismo, homens demais morrem de câncer de próstata no país. Os abusos cometidos pela repórter e pelo apresentador foram tantos, porém, que esse prejuízo passou quase despercebido. 
Por que vale a pena refletir sobre esse episódio? Primeiro, porque ele está longe de ser uma exceção. Se fosse, estaríamos vivendo em um país muito melhor. O microfone (e a caneta) tem sido usado no Brasil, assim como em outros países, também para cometer violências. Nestas imagens, se observarmos bem, a repórter manipula o microfone como uma arma. (Outras interpretações, vou reservar para os psicanalistas.)  
Muitos passam mal ao assistir ao vídeo porque o que se assiste é uma violência sem contato físico, sem marcas visíveis. Uma violação cometida com o microfone e uma câmera, exibida para milhões de pessoas, contra um homem algemado (e, portanto, indefeso), sob a responsabilidade do Estado, que, em vez de garantir os direitos do suspeito, o expõe à violência.  
O suspeito é humilhado por algo que deveria ser uma vergonha para o Estado e para todos nós: a péssima qualidade da educação. E, no caso dele, o analfabetismo de um jovem de 18 anos no ano de 2012, na “sexta economia do mundo”. Ao afirmar que o rapaz era um estuprador, a repórter colocou em risco também a vida do suspeito, já que todos sabem – e muitos toleram – o que acontece dentro das cadeias e prisões com quem comete um estupro. 
A repórter e o apresentador, porém, são apenas a parte mais visível da rede de violações. Estão longe de serem os únicos responsáveis. Para que esse caso se torne emblemático e para que a Justiça valha é preciso que todas as responsabilidades sejam apuradas, a começar pela do Estado. Tanto em permitir que alguém sob sua custódia fosse exibido dessa maneira, e possivelmente contra a sua vontade, numa rede de TV, quanto nas marcas de tortura no seu rosto. As marcas e o relato de espancamento, aliás, seriam objeto da apuração de qualquer bom jornalista. No caso, não suscitaram nenhuma surpresa. 

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