CORAÇÃO DE CRIANÇA
Mães de UTI
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475
À espera de um coração de criança, elas ensinam o que é solidariedade
CRISTIANE SEGATTO
AMIZADE IMPROVÁVEL
Mara Bizinotto e Viviane Suzin se conheceram e se tornaram amigas no InCor
CRISTIANE SEGATTO
Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo. Para falar com ela, o e-mail de contato é cristianes@edglobo.com.br
Mara é presbiteriana. Viviane é católica. Mara é zootecnista. Viviane, corretora de imóveis. Mara vive em Uberaba, Minas Gerais. Viviane é de Concórdia, Santa Catarina. Nenhuma semelhança aparente. O encontro improvável dessas duas mulheres aconteceu graças à imprevisibilidade da vida. Essa que, teimosamente, tentamos controlar.
Numa experiência extrema, elas descobriram que têm muito em comum. As duas acreditam em Deus. As duas se desdobram para equilibrar a vida familiar e a vida profissional. As duas são da mesma geração – aquela que na infância ouvia As Frenéticas e na juventude se emocionava com a reconquista do direito de votar para presidente. As duas são mães que não aceitaram sentar ao lado dos filhos na UTI e apenas esperar.
Mara Bizinotto, 41 anos, e Viviane Suzin, 37 anos, conheceram-se no Instituto do Coração (InCor), em São Paulo. A filha de Mara (Mariana, 3 anos) e o filho de Viviane (Cauê, 2 anos e quatro meses) tiveram uma doença no músculo cardíaco. Crianças ativas, lindas, aparentemente saudáveis receberam, de uma hora para outra, um diagnóstico sombrio. O coração tornara-se incapaz de bombear o sangue normalmente. Só um transplante poderia salvá-las.
Foram muitas as perguntas que as duas fizeram – em voz alta e em silêncio. O que provocou a doença? Qual descuido durante a gravidez? Que deslize nos primeiros meses? Onde falharam? Nem o conforto de uma relação de causa e efeito bem determinada essas mães puderam ter. A causa da doença é desconhecida. Aconteceu. E ponto.
Mara e Viviane pegaram os filhos no colo, deixaram casa e trabalho para trás e se mudaram para São Paulo. Alugaram apartamento nas redondezas do hospital e passaram a viver de esperança. No hospital, perceberam que podiam se ajudar. Quando uma estava no fundo do poço, a outra ainda conseguia oferecer a mão, o braço, o ombro.
Há muitos anos ouço histórias de quem luta pela vida. Esse é o meu trabalho. Sempre me pergunto de onde vem a força das mães. De algum lugar ela vem, e costuma se traduzir num senso prático impressionante. As mães se enchem de energia para fazer com que as coisas funcionem. Não aceitam a imobilidade.
Durante seis meses, Mara esperou pelo coração que poderia salvar Mariana. Descobriu que a maioria das crianças morre na fila. Com a ajuda de uma agência de publicidade, criou uma corrente de emails e postou no Facebook um apelo pela doação de órgãos de crianças. Distribuiu em hospitais planfletos com as fotos de Mariana e Cauê e falou da importância da doação a quem quisesse ouvir. “Precisava ter a certeza de que fiz tudo o que podia”, diz Mara.
Outras colunas de Cristiane Segatto
O mito da mulher limpinha
Drauzio Varella e o vírus sem charme
A indústria do sangue
A gripe parou o coração do titã
Coincidência ou não, o novo coração de Mariana chegou alguns dias depois. A menina ainda está na UTI, mas se recupera bem. Com os parâmetros de saúde dentro do previsto, já comeu mingau de aveia e biscoito e tomou leite. Agora passará por um longo acompanhamento e precisará de cuidados especiais para evitar que o órgão seja rejeitado. “Deus é soberano. Fico feliz que Ele tenha escolhido para a Mariana o caminho que eu desejava”, diz Mara.
Numa UTI, a solidariedade também precisa ser intensiva. É o que aprendem as mulheres que passam longos meses cuidando de um filho num ambiente inóspito. A união que essas mulheres conseguem construir torna mais leve a carga que precisam suportar. Demonstrações de apoio vêm de todos os lados.
ESPERANÇA
Mariana, 3 anos, filha de Mara, fez o transplante na semana passada
Quando o intestino da filha deixou de funcionar bem, semanas antes do transplante, Mara foi surpreendida pela voluntária que trouxe do Ceasa uma caixa de frutas que poderia ajudar. “É muito carinho”.
Mara continua em campanha pelo coração de Cauê e de outras crianças e adolescentes que estão na mesma situação. No momento em que escrevo esta coluna, há seis pacientes (de 0 a 17 anos) esperando por um coração no grupo pediátrico do InCor. “Historicamente, entre 50% e 70% dos pacientes morrem antes de conseguir o transplante”, diz Marcelo Jatene, diretor da unidade de cirurgia cardíaca pediátrica do InCor.
Em duas décadas, o hospital realizou 103 transplantes em 100 pacientes (alguns precisaram passar por um retransplante). Dez anos depois da cirurgia, 70% dos pacientes estão vivos. Em 15 anos, 65%.
Os dados da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) não são animadores. No Brasil, houve 17 transplantes nessa faixa etária em 2010. Um pouco menos que nos anos anteriores: 18 (2009), 19 (2008), 20 (2007). Dos transplantes realizados no ano passado, nove foram feitos em São Paulo, dois no Paraná, dois no Rio Grande do Sul, um no Ceará, um no Distrito Federal, um em Pernambuco e um no Rio de Janeiro.
No grupo de Mariana e Cauê (a faixa dos 0 a 5 anos), a situação é ainda mais dramática. Em 2007, houve 11 transplantes no Brasil. De lá para cá, o número de cirurgias caiu. Oito (em 2008), quatro (em 2009) e apenas duas (em 2010).
“Temos menos órgãos disponíveis para as crianças de 0 a 5 anos”, diz Jatene. “Não sei se é porque morrem menos crianças dessa idade ou se há menos estrutura pediátrica para cuidar adequadamente dos possíveis doadores.”
Esse é um ponto crucial em qualquer transplante – pediátrico ou adulto. Quando a pessoa sofre morte cerebral, os órgãos só podem ser aproveitados se o doador receber os mesmos cuidados que um paciente com chances de voltar para casa receberia. O doador precisa ser mantido numa UTI, receber hidratação, medicação e até sangue se for preciso.
Enquanto a regra nacional for a escassez de UTIs e cuidados – para os vivos e para os mortos – os transplantes não podem avançar. No caso das crianças, há outro complicador. “Quando uma criança pequena morre, as famílias relutam um pouco mais em doar os órgãos”, diz Estela Azeka, cardiologista do programa de transplante cardíaco do InCor. “Como os pequenos morrem em quedas, acidentes domésticos ou atropelamentos, muitos pais se sentem culpados e não conseguem doar os órgãos”, afirma.
A morte inesperada de uma criança subverte a ordem natural das coisas. É injusta, inaceitável, chocante sob qualquer ponto de vista. Nenhuma família deveria passar por isso, mas fatalidades acontecem. Diante da perda, os pais e as mães que optam pela doação acreditam que o filho estará vivo, de alguma forma, se puder permitir que outras vidas prossigam.
O que mantém Viviane em pé é a esperança de encontrar uma família capaz desse ato de generosidade. Cauê precisa de um doador compatível, com peso entre 10 e 30 quilos. O estado dele é muito grave. O músculo cardíaco dilatou demais e não é capaz de trabalhar adequadamente. Na lista de espera, Cauê está em situação de prioridade.
LUTA
Cauê, 2 anos, filho de Viviane, precisa urgentemente de um coração
Numa terça-feira de manhã, ele brincava com um violãozinho no apartamento alugado em São Paulo. Viviane e o marido correram para o InCor quando perceberam que ele estava ficando roxo. Sofreu uma parada cardíaca. “Entrei em desespero quando os médicos disseram que não estavam conseguindo reanimá-lo”, diz Viviane. “Ainda assim, eles disseram que continuariam tentando por uma hora.” Funcionou.
Há 40 dias na UTI, sedado e entubado, Cauê tem uma única chance. “Não desejo que a vida de uma criança termine para que meu filho possa viver”, diz Viviane. “Mas peço a Deus que toque o coração dos pais que acabaram de sofrer uma perda.”
Desde que a campanha começou, as mães receberam inúmeras mensagens de apoio do Brasil e do Exterior. Cada um ajuda com as palavras que pode. Elas fazem diferença. Quem quiser levar essa mensagem adiante, espalhe o link deste texto ou entre em contato com Viviane (vivisuzin@hotmail.com).
“Nessa luta pelo transplante do Cauê descobri que há muita gente boa no mundo”, afirma Viviane. Eternamente agradecida pela doação que a filha recebeu, Mara concorda. “Isso é uma escola de vida”, diz. “Vou sair daqui muito melhor do que entrei.”
Eu também. É exatamente o que sinto quando, a cada reportagem, tenho o privilégio de conhecer gente assim.
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À espera de um coração de criança, elas ensinam o que é solidariedade
CRISTIANE SEGATTO
AMIZADE IMPROVÁVEL
Mara Bizinotto e Viviane Suzin se conheceram e se tornaram amigas no InCor
CRISTIANE SEGATTO
Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo. Para falar com ela, o e-mail de contato é cristianes@edglobo.com.br
Mara é presbiteriana. Viviane é católica. Mara é zootecnista. Viviane, corretora de imóveis. Mara vive em Uberaba, Minas Gerais. Viviane é de Concórdia, Santa Catarina. Nenhuma semelhança aparente. O encontro improvável dessas duas mulheres aconteceu graças à imprevisibilidade da vida. Essa que, teimosamente, tentamos controlar.
Numa experiência extrema, elas descobriram que têm muito em comum. As duas acreditam em Deus. As duas se desdobram para equilibrar a vida familiar e a vida profissional. As duas são da mesma geração – aquela que na infância ouvia As Frenéticas e na juventude se emocionava com a reconquista do direito de votar para presidente. As duas são mães que não aceitaram sentar ao lado dos filhos na UTI e apenas esperar.
Mara Bizinotto, 41 anos, e Viviane Suzin, 37 anos, conheceram-se no Instituto do Coração (InCor), em São Paulo. A filha de Mara (Mariana, 3 anos) e o filho de Viviane (Cauê, 2 anos e quatro meses) tiveram uma doença no músculo cardíaco. Crianças ativas, lindas, aparentemente saudáveis receberam, de uma hora para outra, um diagnóstico sombrio. O coração tornara-se incapaz de bombear o sangue normalmente. Só um transplante poderia salvá-las.
Foram muitas as perguntas que as duas fizeram – em voz alta e em silêncio. O que provocou a doença? Qual descuido durante a gravidez? Que deslize nos primeiros meses? Onde falharam? Nem o conforto de uma relação de causa e efeito bem determinada essas mães puderam ter. A causa da doença é desconhecida. Aconteceu. E ponto.
Mara e Viviane pegaram os filhos no colo, deixaram casa e trabalho para trás e se mudaram para São Paulo. Alugaram apartamento nas redondezas do hospital e passaram a viver de esperança. No hospital, perceberam que podiam se ajudar. Quando uma estava no fundo do poço, a outra ainda conseguia oferecer a mão, o braço, o ombro.
Há muitos anos ouço histórias de quem luta pela vida. Esse é o meu trabalho. Sempre me pergunto de onde vem a força das mães. De algum lugar ela vem, e costuma se traduzir num senso prático impressionante. As mães se enchem de energia para fazer com que as coisas funcionem. Não aceitam a imobilidade.
Durante seis meses, Mara esperou pelo coração que poderia salvar Mariana. Descobriu que a maioria das crianças morre na fila. Com a ajuda de uma agência de publicidade, criou uma corrente de emails e postou no Facebook um apelo pela doação de órgãos de crianças. Distribuiu em hospitais planfletos com as fotos de Mariana e Cauê e falou da importância da doação a quem quisesse ouvir. “Precisava ter a certeza de que fiz tudo o que podia”, diz Mara.
Outras colunas de Cristiane Segatto
O mito da mulher limpinha
Drauzio Varella e o vírus sem charme
A indústria do sangue
A gripe parou o coração do titã
Coincidência ou não, o novo coração de Mariana chegou alguns dias depois. A menina ainda está na UTI, mas se recupera bem. Com os parâmetros de saúde dentro do previsto, já comeu mingau de aveia e biscoito e tomou leite. Agora passará por um longo acompanhamento e precisará de cuidados especiais para evitar que o órgão seja rejeitado. “Deus é soberano. Fico feliz que Ele tenha escolhido para a Mariana o caminho que eu desejava”, diz Mara.
Numa UTI, a solidariedade também precisa ser intensiva. É o que aprendem as mulheres que passam longos meses cuidando de um filho num ambiente inóspito. A união que essas mulheres conseguem construir torna mais leve a carga que precisam suportar. Demonstrações de apoio vêm de todos os lados.
ESPERANÇA
Mariana, 3 anos, filha de Mara, fez o transplante na semana passada
Quando o intestino da filha deixou de funcionar bem, semanas antes do transplante, Mara foi surpreendida pela voluntária que trouxe do Ceasa uma caixa de frutas que poderia ajudar. “É muito carinho”.
Mara continua em campanha pelo coração de Cauê e de outras crianças e adolescentes que estão na mesma situação. No momento em que escrevo esta coluna, há seis pacientes (de 0 a 17 anos) esperando por um coração no grupo pediátrico do InCor. “Historicamente, entre 50% e 70% dos pacientes morrem antes de conseguir o transplante”, diz Marcelo Jatene, diretor da unidade de cirurgia cardíaca pediátrica do InCor.
Em duas décadas, o hospital realizou 103 transplantes em 100 pacientes (alguns precisaram passar por um retransplante). Dez anos depois da cirurgia, 70% dos pacientes estão vivos. Em 15 anos, 65%.
Os dados da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) não são animadores. No Brasil, houve 17 transplantes nessa faixa etária em 2010. Um pouco menos que nos anos anteriores: 18 (2009), 19 (2008), 20 (2007). Dos transplantes realizados no ano passado, nove foram feitos em São Paulo, dois no Paraná, dois no Rio Grande do Sul, um no Ceará, um no Distrito Federal, um em Pernambuco e um no Rio de Janeiro.
No grupo de Mariana e Cauê (a faixa dos 0 a 5 anos), a situação é ainda mais dramática. Em 2007, houve 11 transplantes no Brasil. De lá para cá, o número de cirurgias caiu. Oito (em 2008), quatro (em 2009) e apenas duas (em 2010).
“Temos menos órgãos disponíveis para as crianças de 0 a 5 anos”, diz Jatene. “Não sei se é porque morrem menos crianças dessa idade ou se há menos estrutura pediátrica para cuidar adequadamente dos possíveis doadores.”
Esse é um ponto crucial em qualquer transplante – pediátrico ou adulto. Quando a pessoa sofre morte cerebral, os órgãos só podem ser aproveitados se o doador receber os mesmos cuidados que um paciente com chances de voltar para casa receberia. O doador precisa ser mantido numa UTI, receber hidratação, medicação e até sangue se for preciso.
Enquanto a regra nacional for a escassez de UTIs e cuidados – para os vivos e para os mortos – os transplantes não podem avançar. No caso das crianças, há outro complicador. “Quando uma criança pequena morre, as famílias relutam um pouco mais em doar os órgãos”, diz Estela Azeka, cardiologista do programa de transplante cardíaco do InCor. “Como os pequenos morrem em quedas, acidentes domésticos ou atropelamentos, muitos pais se sentem culpados e não conseguem doar os órgãos”, afirma.
A morte inesperada de uma criança subverte a ordem natural das coisas. É injusta, inaceitável, chocante sob qualquer ponto de vista. Nenhuma família deveria passar por isso, mas fatalidades acontecem. Diante da perda, os pais e as mães que optam pela doação acreditam que o filho estará vivo, de alguma forma, se puder permitir que outras vidas prossigam.
O que mantém Viviane em pé é a esperança de encontrar uma família capaz desse ato de generosidade. Cauê precisa de um doador compatível, com peso entre 10 e 30 quilos. O estado dele é muito grave. O músculo cardíaco dilatou demais e não é capaz de trabalhar adequadamente. Na lista de espera, Cauê está em situação de prioridade.
LUTA
Cauê, 2 anos, filho de Viviane, precisa urgentemente de um coração
Numa terça-feira de manhã, ele brincava com um violãozinho no apartamento alugado em São Paulo. Viviane e o marido correram para o InCor quando perceberam que ele estava ficando roxo. Sofreu uma parada cardíaca. “Entrei em desespero quando os médicos disseram que não estavam conseguindo reanimá-lo”, diz Viviane. “Ainda assim, eles disseram que continuariam tentando por uma hora.” Funcionou.
Há 40 dias na UTI, sedado e entubado, Cauê tem uma única chance. “Não desejo que a vida de uma criança termine para que meu filho possa viver”, diz Viviane. “Mas peço a Deus que toque o coração dos pais que acabaram de sofrer uma perda.”
Desde que a campanha começou, as mães receberam inúmeras mensagens de apoio do Brasil e do Exterior. Cada um ajuda com as palavras que pode. Elas fazem diferença. Quem quiser levar essa mensagem adiante, espalhe o link deste texto ou entre em contato com Viviane (vivisuzin@hotmail.com).
“Nessa luta pelo transplante do Cauê descobri que há muita gente boa no mundo”, afirma Viviane. Eternamente agradecida pela doação que a filha recebeu, Mara concorda. “Isso é uma escola de vida”, diz. “Vou sair daqui muito melhor do que entrei.”
Eu também. É exatamente o que sinto quando, a cada reportagem, tenho o privilégio de conhecer gente assim.
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